quarta-feira, abril 30, 2008

Crise de alimentos, segurança alimentar e agricultura sustentável



NOVO JORNAL DE 18 DE ABRIL DE 2008

Crise de alimentos, segurança alimentar e agricultura sustentável

Angola tem condições para envitar alguns males que a actual crise alimentar provoca através de uma política agrícola mais autónoma e substentável

Fernando Pacheco
A REFLEXÃO ACADÉMICA e científica sobre de¬senvolvimento é muito pobre em Angola, prin¬cipalmente quando se trata de desenvolvimen¬to rural, o que é explicado pela subalternização da investigação científica e dos problemas rurais no quadro das prioridades do Governo. A forma como se (não) tem abordado a crise do aumento dos preços dos alimentos entre nós é apenas mais uma evidência disso.

Acabada a guerra, aumentou naturalmente o in¬teresse na produção camponesa - que errada¬mente continua a ser considerada de subsistên¬cia, ignorando-se que ela foi responsável pela auto suficiência alimentar de Angola em termos líquidos até 1973 - pelo papel que pode ter na redução do peso do petróleo no Produto Inter¬no Bruto. Como durante mais de trinta anos es¬ta questão esteve longe do centro do debate na¬cional - excepto quando os preços do petróleo baixaram para níveis considerados inquietantes -, não há hoje ideias claras sobre a forma de li¬dar com ela.

Entendo que o desenvolvimento ou é sustentá¬vel, isto é, continuado e com condições para se ampliar e reproduzir, ou não é desenvolvimento. Para isso é fundamental que se tenha em consi¬deração, entre outros, o factor humano. Ignorar os sistemas de produção praticados pelos campo¬neses, que têm garantido, em situações normais, a sua sobrevivência, é um erro crasso. O aumento da produção em condições como as de Angola pode ser encarado sob duas diferen¬tes correntes de pensamento. Uma, a "produtivista", põe o foco no resultado, isto é, na produ¬ção em si, e esteve na base da chamada revolução verde, que permitiu progressos espectaculares na produtividade, mas não acabou com a fome nos países onde ocorreu, excluiu a mulher ou re¬duziu o seu papel no processo de tomada de de¬cisões relativas à produção agrícola e tem pro¬vocado sérios danos ambientais. Outra corrente é a "ecológica" ou "sustentável", que dá ênfase ao processo de transformação gradual dos siste¬mas tradicionais, em que o produtor, o elemento-chave, ganha consciência da necessidade de tal transformação, e tem mais preocupações com a preservação do ambiente. Ela preconiza a evolu¬ção para os chamados sistemas agro-silvo-pastoris, baseados na associação de culturas anuais ou fruteiras, com a criação de gado e a exploração florestal, pois, se o agricultor tiver gado e explo¬rar a floresta - natural ou plantada - poderá dis¬por de matéria orgânica para melhorar a estru¬tura dos solos, reduzir a sua acidez e defendê-los contra a erosão, males que afectam a produção em quase todo o território narional e contribuem para a degradação ambiental. Ao contrário do que é hoje o pensamento dominante em Angola, esta linha - e não a produtivista - é considera¬da mais "moderna" ou avançada a nível mundial, e não é de estranhar que os chamados produtos orgânicos sejam os mais caros em qualquer su¬permercado dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, ela confere menos dependência em rela¬ção aos mercados internacionais, o que se revela particularmente importante nos dias de hoje. Se se tivessem em conta os tais saberes e siste¬mas, muitas das catástrofes alimentares pro¬vocadas por irregularidades climáticas seriam evitadas. É verdade que os actuais sistemas de produção são menos produtivos que os "moder¬nos", mas são claramente social e ecologica¬mente mais sustentáveis. Nestes últimos anos os camponeses que semearam milho, massango e feijão de variedades mais resistentes à seca e às pragas e doenças, ou plantaram mandioca ou batata doce, estiveram mais protegidos contra a seca. Não foi por acaso que este ano, nas provin¬cias de tradição de mandioca - cultura que nun¬ca mereceu atenção por parte da investigação no tempo colonial - não há tanta fome como nas produtoras de cereais com variedades conside¬radas mais produtivas. Os preços da fubá não su¬biram tanto nos mercados de Malanje como nos dos municípios da Huíla hoje considerados o ce¬leiro do País.

Uma instituição científica como o Centro Nacio¬nal de Recursos Fitogenéticos, que tem recolhido por quase todo o território, preservado e multi¬plicado material que reconhecidamente dá mais garantias aos pequenos agricultores, apesar de algumas melhorias recentes é praticamente ig¬norado, e só a persistência dos seus membros faz com que não caia no esquecimento total. Infeliz¬mente ainda há outras prioridades que se sobre¬põem à segurança alimentar de milhões de ango¬lanos.

Angola tem condições para evitar alguns dos ma¬les que a actual crise alimentar provoca, porque ainda está a tempo de definir uma política agrí¬cola mais autónoma e sustentável. Para isso tem de reflectir e debater sobre algumas das opções que se desenham e põem em perigo tal opção, como a criação de gado de larga escala e a produ¬ção de biocombustíveis sem que condições téc¬nicas e científicas estejam reunidas para tal. Vol¬tarei ao assunto.

terça-feira, abril 29, 2008

Horror ao Vazio-Texto de Pepetela


HORROR DO VAZIO


Sei que pode parecer repetitivo, mas afligem-me as megalomanias se apossando de algumas cabeças que assumem responsabilidades em relação a Luanda. Uns tantos acham que merecemos ter uma capital no estilo Singapura ou Hong Kong, com torres de quarenta andares (no mínimo) ao longo do mar. Não é forçosamente para amealhar umas comissões, como imediatamente pensam os nossos cérebros borrados de preconceitos, embora uns tantos aproveitem. Nada de novo, afinal: o mundo está cheio de processos por causa do imobiliário e o cinema e a literatura até já esgotaram o tema. O que me preocupa é muita gente estar sinceramente convencida que isso é que é bonito e assim é que será viver bem. Têm horror ao vazio que nas suas cabeças significa uma praça, um jardim, um parque, um desperdício de espaço que ficaria melhor com uma torre no meio (antes dizia-se arranha-céus, mas reconheço o exagero americano ao inventar o termo, porque os céus não têm costas, são da natureza dos anjos, e ninguém imaginaria um edifício a arranhar as costas de um anjo). Torre é melhor, lembra logo aquelas construções onde se enfiavam os prisioneiros para morrerem lentamente, como a célebre Torre de Londres, ou onde se aninhava o povo da Europa medieval para se defender de ataques. Torre sim, pois os seus utentes/prisioneiros vivem no medo de sair à rua, de viver a cidade, enclausurados e protegidos da miséria que espalham à volta de si.

Queixamo-nos do trânsito na baixa da cidade (não só na baixa, sejamos justos) e nem sempre escapamos de lá cair, porque ali está concentrado mais de metade do capital financeiro e dos serviços do país. E querem fazer mais torres, para atrair mais gente e mais carros? Que as torres vão ter parques de estacionamento, dizem os defensores das ideias futuristas. O problema é entrar ou sair dos parques, porque as ruas estão atulhadas de carros. Claro que há uma solução do mesmo estilo: fazer as ruas da baixa com andares, género auto-estrada em fatias sobrepostas, ou até com viadutos por cima dos prédios, a arranharem as nuvens. Isso seria um arranhanço útil. E já agora peço, façam um túnel por baixo da baía ou uma ponte a ligar o bairro Miramar à Ilha, assim chegamos à praia em cinco minutos, como era há vinte anos atrás. Como de todos os modos a ideia geral é dar cabo da baía e da Ilha, também tanto faz, mais ponte menos ponte… Suponho também que já deve haver negociações para se tirar a Igreja da Nazaré do sítio onde está, a ocupar indevidamente um espaço nobre para mais uma torre. Uma pequena concessão não fica mal, mantém-se a igreja na cave do edifício. A História que se lixe, não foi a lição da destruição do palácio de D. Ana Joaquina? Então continuemos. Neste afã de ocupar todos os espaços, proponho também acabar com o prédio dos correios, bem feio e sem valor arquitectónico por sinal, e já agora com a praceta à sua frente, outro desperdício de espaço. E aquele compacto e azul edifício que serve a polícia? Um quarteirão inutilizado! A polícia pode ocupar um andar da nova torre. Com menos agentes, claro, para se fazer encolher o Estado, assim mandam os compêndios do liberalismo económico, nossa nova Bíblia.

Problema que estamos com ele é que todas essas novas construções vão ter sérias infiltrações de água salgada, pois ali antes era mar. E o mar gosta de recuperar o que lhe roubaram, ainda mais agora com a previsão da subida dos oceanos, como em todas as conferências se apregoa. Vai ser lindo, com as fundações das torres a serem corroídas pelo salitre e os prédios a desabarem. Felizmente para eles, já não estarão cá os responsáveis nem os seus filhos. E os netos dos outros que se lixem.

Pepetela

segunda-feira, abril 28, 2008

Este não mete Água!


Palestra do escritor moçambicano Mia Couto em homenagem a Jorge
Amado, lida em São Paulo no dia 25


"Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma mensagem
partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo
Verde,Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge
Amado
foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura dos
países africanos que falam português.

A nossa dívida literária com o Brasil começa há séculos, quando Gregório
de Mattos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários
em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram restritos e
não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras deixadas pelo
baiano.

Deve ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela
projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições
governamentais juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas
instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura.
Nesta sala, estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e criaram
pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e Caetano
Veloso.
Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos países que
encontraram luz e
inspiração na vossa música, na vossa poesia. Para Alberto Costa e Silva vai
o
nosso agradecimento pelo empenho sério no estudo da realidade histórica do
nosso continente.

Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e
causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário coletivo. É
preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam
Manuel
Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Rachel de
Queiroz,Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e tantos, tantos
outros.

Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a um
filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial.
Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre
Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano
revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a
festa
desse mesmo Brasil.

Neste breve depoimento, eu gostaria de viajar em redor da seguinte
interrogação: por que este absoluto fascínio por Jorge Amado, por que
esta adesão imediata e duradoura?

É sobre algumas dessas razões do amor por Amado que eu gostaria de falar
aqui. É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente
na qualidade do texto do baiano. Eu acho que o maior inimigo do escritor
pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é
escrevê-lo
demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa, e
soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de histórias e
um notável criador de personagens. Recordo o espanto de Adélia Prado que,
após a edição dos seus primeiros versos confessou: "Eu fiz um livro e,
meu
Deus,não perdi a poesia..." Também Jorge escreveu sem deixar nunca de
ser
um
poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua
artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.

Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa intíma, uma
conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Bahia e se
estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluído e espreguiçado,
Jorge vai desfiando prosa e os seus personagens saltam da página para a
nossa
vida cotidiana.

O escritor Gabriel Mariano de Cabo Verde escreveu o seguinte: "Para mim,
a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros e
via a minha terra. E quando encontrei Quincas Berro d'Água eu o via na
Ilha
de São Vicente, na minha rua de Passá Sabe."

Essa familiaridade exisitencial foi, certamente, um dos motivos do
fascínio nos nossos países. Seus personagens eram vizinhos não de um lugar,
mas
da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as
nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os
nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses,
ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume
das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós
mesmos.

Em Angola, o poeta Mario António e o cantor Ruy Mingas compuseram uma
canção que dizia: Quando li Jubiabá/me acreditei Antônio Balduíno./Meu
Primo, que nunca o leu/ficou Zeca Camarão. E era esse o sentimento:
António Balduino já morava em Maputo e em Luanda antes de viver como
personagem
literário. O mesmo sucedia com Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com
Tieta, com Dona Flor e Gabriela e com tantos os outros fantásticos
personagens.

Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um
autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava à África.
Havia pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E
nós
precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes
soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um
espaço mágico onde nos renasciam os criadores de histórias e produtores
de felicidade.

Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser
nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da
nossa
religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos
rio.

Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a
explicar por que Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros
motivos, talvez mais circunstanciais.

Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado
eram objeto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores foram
perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o nosso irmão
brasileiro surgia, pois, com épico sabor da afronta e da
clandestinidade.

A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da liberdade
também contribuiu para a mística da escrita e do escritor. O angolano
Luandino
Vieira, que foi condenado a 14 anos de prisão no Campo de Concentração
do Tarrafal, em 1964, fez passar para além das grades uma carta em que
pedia o seguinte: "Enviem meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele
consegue
publicar lá no Brasil..."

Na realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram
Amado como uma bandeira. Há um poema da nossa Noêmia de Sousa que se
chama Poema de João, escrito em 1949 e que começa assim:

João era jovem como nós/João tinha os olhos despertos,/As mãos
estendidas para a frente,/A cabeça projetada para amanhã,/João amava os
livros que
tinham alma e carne/João amava a poesia de Jorge Amado

E há, ainda, outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro
lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa
língua.

Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma
que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até
se
dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que
não
nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de
viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro
português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

O poeta maior de Moçambique, chamado José Craveirinha, disse o seguinte
numa entrevista: "Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve
uma influência tão grande que, em menino eu cheguei a jogar futebol com o
Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos obrigados a passar
pelos autores clássicos de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos
libertamos com a ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou
a ser um reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado,
então, nós tínhamos chegado à nossa própria casa."

Craveirinha falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em casa e
fazer do sonho uma casa. Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso
que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros.
Por
ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido
a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge. Muito
obrigado."


Mia Couto
---

O escritor Antonio Emílio Leite Couto, Mia Couto, nascido em 1955 na
cidade de Beira, em Moçambique, é poeta, contista, cronista e romancista,
autor
de livros como Terra Sonâmbula, O Último Vôo do Flamingo e O Outro Pé da
Sereia, entre outros

sábado, abril 26, 2008

Água leva o regador!


LEITURAS & ETC




A TRADIÇÃO LITERÁRIA ANGOLANA

E O GRAU ZERO DA MEMÓRIA DE UM ESCRITOR

(A propósito da incapacidade de fundamentar um juízo de natureza estética e literária)




Luís Kandjimbo







Em Março de 1989, fazendo parte de uma delegação de escritores angolanos, participei no I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde tive a oportunidade de apresentar uma comunicação que suscitou um debate com o malogrado Manuel Ferreira, o primeiro professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tive igualmente o grato prazer de trocar impressões com o também já falecido escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, que me abordou para concordar com a minha tese sobre a «descalibanização» das literaturas africanas de língua portuguesa.

Desse evento conservo uma fotografia que dá uma vista parcial da audiência presente na sessão plenária de abertura. Numa das filas atrás de mim, vê-se um jovem que eu encontrara pela primeira vez em Lisboa. Lembro-me que num dos intervalos ele ter-me-ia interpelado para dizer que era angolano, nascido numa província do sul. Pareceu reivindicar o direito de estar ali, também na qualidade de «jovem escritor», para empregar uma expressão que estava então em voga em Angola. Não dei importância ao fortuito acaso. Passados cerca de dois anos, voltei a encontrá-lo na redacção do Jornal de Angola. Deu-me a notícia de que era jornalista de um jornal português, enviado a Luanda como repórter. E convidou-me a escrever um texto para a Via Latina, prestigiada revista de Coimbra. Mas a referida publicação só teve a sorte de inserir um texto meu dezassete anos depois.

Esse jovem, que em 1989 não era conhecido em Angola, chamava-se afinal Eduardo Agualusa, autor de um texto publicado no Novo Jornal de 18 de Abril do corrente. Não pertenceu a nenhuma das Brigadas de Literatura disseminadas pelo país na década de 80.

Hoje, julgo que ele jovem ignorava completamente o facto de os seis «mais novos» escritores (João Melo, E.Bonavena, Cikakata Mbalundu, Rui Augusto, Lopito Feijó) da delegação presente naquele Congresso terem passado por processos de socialização que de uma forma ou de outra lhes permitia assumir plenamente o sentimento de pertencerem a uma tradição literária angolana.

Ora, como compreender que vinte anos depois, tal jovem nascido numa província do sul de Angola, venha emitir juízos estéticos depreciativos acerca de três poetas angolanos importantes, revelando pertencer a uma tradição literária universal?

Como se explica que ganhe fortuna crítica em nome da tradição literária angolana cuja existência nega com frequência, tal como fez mais recentemente numa entrevista concedida ao conhecido humorista brasileiro Jô Soares?

Fazendo gala das suas leituras de autores «universais», é confrangedor que não saiba que estes têm as suas tradições literárias, inventadas em algum lugar do nosso planeta. Com efeito, torna-se evidente que a pertença à tradição literária angolana causa-lhe alguma repugnância, a julgar pelos indícios do modo como pensa. Para quem tira as dúvidas recorrendo aos escritores «universais», como se eles fossem representantes dos poetas orais vakuvale ou vakwanyama, que até não os conhecem, sugiro que leia T.S. Eliot, o inglês de origem americana. Se acaso leu aquele autor, esqueceu-se das teses publicadas nos Ensaios de Doutrina Crítica. Ao abordar a problemática da tradição e do talento individual, T.S.Eliot, afirma: «Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo significado. O seu significado, a sua avaliação, é a avaliação da sua relação com os poetas e os artistas mortos». Se não tivesse perdido de vista uma voz autorizada como esta, chegaria à conclusão de que continua a revelar falhas graves de argumentação, ao ter tentado articular uma boutade destituída de qualquer consistência. Não acredito que com as suas meditações sobre uma suposta dissidência poética tenha, num sentido contrário, persuadido os leitores angolanos da poesia de Agostinho Neto, António Jacinto, Alexandre Dáskalos, Aires Almeida Santos Viriato da Cruz, António Cardoso e outros. Aponto em seguida algumas razões.

Em primeiro lugar, não fornece argumentos que tenham resultado do seu próprio pensamento, na medida em que socorre-se das palavras de dois escritores cabo-verdianos, mas não os cita com rigor argumentativo como seria desejável, por dever de ética e honestidade intelectual. Mesmo assim, no que diz respeito ao falecido João Vário, poeta com quem tive longas conversas sobre a poesia africana durante a sua última passagem por Angola, a paráfrase não corresponde ao que o perturbava neste domínio (o seu testemunho pode ser lido nos dois volumes de entrevistas a escritores cabo-verdianos da autoria de Michel Laban). Um dos males que ele denunciava em alguma poesia dos países africanos de língua portuguesa é o cantalutismo, isto é, uma certa escrita panfletária cujos autores reivindicavam o estatuto de criação poética. Nunca o ouvi falar de Agostinho Neto ou António Jacinto como maus poetas. Aliás, foi em Angola que ele sentiu a necessidade de escrever uma epopeia para cantar a gesta dos povos africanos bantu, desde os tempos das migrações até às independências. Por outro lado, João Vário não pode ser tomado como autoridade qualificada em matérias respeitantes às literaturas africanas, na medida em que, paradoxalmente, encontrava as referências do seu discurso poético na tradição greco-latina. O poeta cabo-verdiano Corsino Fortes imortalizou uma crítica feroz contra essa alienação do João Vário no poema Carta de Bia d’Ideal: «Junzin! Até na boca de São Vicente / Teu nome agora é Vário ou T.Thio Tiofe / Que tu és um negro negro greco-latino / Mas, deveras? Deveras? (...)

Em segundo lugar, opera-se com uma falácia, quando se considera que «para se escrever grande poesia é preciso primeiro ler os grandes poetas universais». O que são «poetas universais»? Não existe qualquer relação de causalidade entre a leitura de tais poetas e a escrita de excelente poesia. Além disso, há aí uma confusão entre aquilo que releva da condição de simples leitor, membro de uma determinada comunidade interpretativa, e o que entra no campo da actividade dos estudiosos da literatura, porque ler os poetas do mundo ocidental pode ser apenas uma condição necessária para explicar e comentar obras num contexto institucional em que predominem constrangimentos próprios. Invocar o universal sem ter em conta a primazia do particular é uma forma tendenciosa de reconhecer a hegemonia das culturas do mundo ocidental numa lógica colonialista. O universal assim enunciado é uma autêntica armadilha, pois ignora a existência dos Africanos, por exemplo.




É uma abominável prova de ignorância relativamente à história das literaturas africanas comparar sem fundamento dois poetas que pertencem a tradições literárias nacionais diferentes. Afirmar que Agostinho Neto (1922-1979) foi um político que frequentou a poesia e Senghor (1906-2001) um poeta que frequentou a política é, na verdade, um trocadilho que constitui o cúmulo da bazófia.

Conhecendo bem as literaturas africanas de língua francesa e inglesa, considero que semelhantes afirmações revelam a mais desbragada irresponsabilidade do acto judicativo e hermenêutico. Por isso, tenho dúvidas que quem assim pensa, conheça verdadeiramente as trajectórias biográficas dos dois escritores mencionados.

Que motivação subjaz à exaltação dos estudos clássicos de Leopold Senghor realizados na Universidade da Sorbonne, quando se esquece que, nas décadas de 40 e 50, Agostinho Neto foi dos primeiros negros angolanos a realizar os seus estudos de Medicina nas Universidades de Coimbra e de Lisboa? Ou será porque a alusão que Senghor faz à origem portuguesa do nome e à gota de sangue português representa uma virtude luso-tropical? Vê-se logo que o suposto juízo estético sobre a poesia de Agostinho Neto resvala para um registo biografista com laivos deterministas sem relevância crítica.

De tudo isso podemos retirar algumas lições. Não devemos ter ilusões. As tradições culturais e literárias servem sempre as comunidades que as criaram. Cada país tem a literatura e os escritores que merece. Por que razão teremos necessidade de convencer o mundo sobre a nossa história, a nossa cultura e a nossa literatura se elas são formas através das quais se manifesta a identidade colectiva e a coesão sociocultural das mulheres e homens deste país a que alguns de nós têm o orgulho de pertencer?

Finalmente, talvez seja interessante deixar um conselho para os leitores eruditos e poliglotas que falam das literaturas africanas, em que se inclui a literatura angolana, sem as conhecer em profundidade. Leiam a The Cambridge History of African and Caribbean Literature (2004) cuja edição foi organizada por dois vultos da crítica académica africana, os professores Abiola Irele e Simon Gikandi, respectivamente, da Universidade de Harvard e da Universidade de Michigan; e a African Literature. An Anthology of Criticism and Theory (2007), numa edição organizada por outros dois professores africanos, trabalhando igualmente nos Estados Unidos e no Canadá, Tejumola Olaniyan e Ato Quayson, respectivamente, da Universidade de Wisconsin e da Universidade de Toronto.

Continuamos com Água!


Réplica a «Dissidência poética ou poética da dissidência», de JE Agualusa

O seu a seu dono




Agualusa atribui todo mérito a Rui Mingas porque se recusa a perceber que os poemas de Agostinho Neto, por si sós, têm uma musicalidade intrínseca, «uma melodia silenciosa», como diria o poeta João Maimona




Adriano dos Santos Jr.





Num artigo publicado no «Novo Jornal», edição nº. 13, de 18 de Abril de 2008, sob o título «Dissidência poética ou a poética da dissidência», o escritor José Eduardo Agualusa decidiu justificar a afirmação feita numa entrevista dada ao «Angolense», acerca da poesia de Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso.

Desta vez Agualusa já não se apresenta como uma divindade, toda ela perfeição, sabedoria, intolerância, detentora da verdade. Surge humano como qualquer um, competente profissional das letras, sensato e modesto a pontos de admitir que tem os seus limites. «…Exerci durante longos anos o ofício de crítico literário em publicações muito respeitadas, como os jornais Público e Expresso, ou ainda a revista Colóquio Letras. Estou consciente, não obstante, do reduzido valor das minhas opiniões literárias. Não são suficientes para autorizar, ou desautorizar quem quer que seja. São simplesmente as minhas opiniões….», diz o grande escritor. Os nossos sinceros parabéns!

Todavia, quanto a nós, ao tentar justificar-se e fazer-se compreender, Agualusa esgrime argumentos falaciosos.

Assim, comparando Agostinho Neto a Leopold Senghor, refere que «…Agostinho Neto foi um político que frequentou a poesia - por razões políticas. Senghor foi um poeta que frequentou a política – por razões poéticas…». São pontos de vista, que nos cabe respeitar.

O que não estamos de acordo é com o fundamento de Agualusa, segundo o qual Leopold Senghor tenha sido um grande poeta por ter ido beber à fonte da Grécia Antiga para além das tradições africanas, ter estudado na Sorbonne, ter tido orgulho pela sua «gota de sangue português», evocada num dos seus grandes poemas transcritos por Agualusa, e ter publicado onze livros, enquanto que Agostinho Neto não poderia ser um grande poeta porque não teria ido beber à bica da Grécia antiga, não passou pela Sorbonne e não publicou assim tantos livros. Para nós Leopold Senghor e Agostinho Neto foram grandes poetas pelas suas obras, independentemente dos santuários do saber que tenha frequentado ou visitado.

Por mais que devamos incentivar os nossos literatos a produzirem muito e terem o máximo apego à Cultura quer seja clássica ou tradicional, não nos podemos esquecer que o Poeta nasce e o Erudito faz-se. Há Poetas analfabetos e Eruditos incapazes de engendrar um poema. Por outro lado, os critérios para a classificação de escritores, poetas, contistas, romancistas, etc., não têm como factor essencial a quantidade de obras publicadas nem o número de versos ou de páginas das mesmas, mas sim a sua qualidade. Existem poetas de um poema só, contistas de um conto só e romancistas de um só romance. Embora possam ser excepções, literaturas relevantes de vários povos e em diversas épocas, registam casos em que autores de uma só obra integram as mesmas galerias que as de outros mais fecundos e com todo o merecimento.

Agualusa diz que «…Neto foi buscar parte da sua motivação poética a Senghor mas não dispunha nem do talento deste, nem da sua vasta erudição…». Aqui chegados, sem querermos comparar o talento e a erudição dum e doutro poeta porque não estamos capacitados para isso e, infelizmente, não dispomos de nenhum instrumento que nos permita aferir o grau de cultura de cada um, como por exemplo uma escala de Richter para medir a intensidade dos terramotos, torna-se conveniente informar para quem não saiba que apesar de não terem estudado na Sorbonne, tanto Agostinho Neto, quanto António Jacinto ou António Cardoso possuíam formação académica; Agostinho Neto e António Jacinto atingiram o nível universitário e António Cardoso tinha o Curso Complementar dos Liceus, então denominado 7º ano, tudo de acordo com o modelo clássico, ocidental, confiram-se os currículos da época; por isso não duvidamos de que, no mínimo, tivessem molhado os pés nas águas da Grécia Antiga, se é que esta é a condição sem a qual não se poderá ser um grande poeta.

Ademais, não se limitaram ao conhecimento das disciplinas escolares ou universitárias; eram também autodidactas, ávidos de saber e por isso detentores duma cultura invulgar; iam à fonte beber directamente os valores culturais, espirituais e materiais do seu povo, escutando os sábios iletrados, indiferentes ao risco de perderem as vantagens que a cor da pele ou a instrução superior lhes proporcionava na altura, sujeitando-se à prisão e ao desterro, como aliás aconteceu com os três. Não eram portanto nenhuns ignorantes e muito menos analfabetos funcionais ou doutra espécie; eram intelectuais em qualquer das Latitudes, Norte ou Sul.

Quanto a Agostinho Neto ter ido buscar parte da sua motivação a Senghor, como diz Agualusa, pode muito bem ser, não significa demérito nenhum, nada mais natural; é bastante comum autores de muita aptidão, mais novos, inspirarem-se noutros que sejam mais velhos, chegando a imita-los de início, até adquirirem o seu próprio estilo. Mia Couto, o engenhoso, fértil e agora original escritor moçambicano, deve estar cansado de repetir que começou por imitar Luandino Vieira e orgulha-se disso. Não sabemos se Agualusa também terá começado por imitar alguém, pode ser que sim e da mesma forma pode ser que já existam jovens autores, mais novos, a imitarem Agualusa.

Conforme Agualusa, «…Os versos de Agostinho Neto cumpriram com sucesso a função que se propunham, ou seja, a de chamar atenção para a injustiça colonial, mas, ao contrário dos de Leopold Senghor, dificilmente ganharão o futuro…». Como não estamos aqui para discutir pontos de vista pessoais, o nosso é que os poetas Agostinho Neto, António Jacinto e António Cardoso já ganharam o futuro, apesar das opiniões em contrário.

Falando de críticas à obra de Agostinho Neto, Agualusa cita duas vozes segundo ele muitíssimo mais autorizadas do que a sua, que entendem ser Agostinho Neto um poeta menor; o que se passa é que Agualusa só terá lido a primeira página do «livro das críticas» a Agostinho Neto; se se der ao trabalho de ler a segunda página, irá de certeza encontrar outras duas ou mais vozes, também muito autorizadas, que entendem ser Agostinho Neto um poeta maior; nesta fase de tolerância e compreensão em que se apresenta não cremos que Agualusa os vá taxar de ignorantes, por esse facto.

«…Talvez se justifique aqui acrescentar, para concluir, que gosto muito de escutar os versos de Agostinho Neto musicados por Rui Mingas. Gosto deles, como centenas de milhares de angolanos, devido à arte de Rui Mingas e também porque fazem parte do meu imaginário, e isto independentemente da sua qualidade literária…», revela Agualusa. A nosso ver, a beleza e o sucesso dos versos de Agostinho Neto musicados por Rui Mingas, que o nosso grande escritor adora escutar, não depende apenas da intervenção do genial compositor; Agualusa atribui todo mérito a Rui Mingas porque se recusa a perceber que os poemas de Agostinho Neto, por si sós, têm uma musicalidade intrínseca, «uma melodia silenciosa», como diria o poeta João Maimona referindo-se à poesia de António Jacinto. Interagindo e complementando-se, os talentos do poeta e do cancionista produziram as maravilhas que encantam até os desafectos.

«…Para escrever grande poesia é preciso primeiro ler grandes poetas universais…», proclama Agualusa; no entanto ninguém lhe garante que Agostinho Neto de facto não leu grandes poetas universais que o potenciassem a escrever a sua grande poesia.

Finalmente Agualusa acrescenta, sentenciando: «…Acreditar que temos muitos poetas excelentes pode melhorar a nossa auto-estima, mas não faz com que tenhamos muitos poetas excelentes. Podemos até convencer-nos a nós, mas não convenceremos nunca o resto do mundo…». Se, por um lado, não é sobrestimando os nossos poetas que passaremos a ter muitos e excelentes, por outro lado, não será subestimando-os que os iremos melhorar; não podemos ter a veleidade de convencer a todos os críticos do mundo da excelência dos nossos poetas; mas não será a opinião de uns quantos autorizados ou não, as vezes até suspeitos, que quebrará o orgulho que temos por eles e ainda mais quando celebrados por muitos outros críticos também autorizados, desse mesmo resto do mundo.




Luanda, 22 de Abril de 2008

quarta-feira, abril 23, 2008

Luanda de luxo





Desponta em Luanda uma nova sociedade angolana que, entre festas e champanhe, vive do petróleo, dos diamantes e de negócios multimilionários


FESTA Há quem viva entre recepções oficiais nos jardins da Cidade Alta e galas no palácio oficial do Presidente. Para trás ficam os que nada têm, num país em que a taxa de desemprego é de 80%


Hoje há festa em Luanda. Hoje, um dia qualquer. Um bebé nasceu entre o lixo, próximo de um esgoto a céu aberto, alguém atirou uma lata de «gasosa» para um chão imundo, alguém lhe deu um pontapé, alguém a recolheu para vender no mercado da sobrevivência, alguém caiu de um prédio sem varanda, sem água, sem luz, cheio de nada, cheio de gente, construído em altura, como em extensão se construíram quilómetros de barracas instáveis e insalubres, chamados musseques. Todos no âmago desta Luanda, uma camisa-de-forças recheada de automóveis, quase tantos como os buracos das suas ruas. Esta Luanda encerra toda a Angola, encerrando-se da Angola que resta. A assimetria entre a capital e as províncias é enorme. E parece menor se comparada com as paralelas assimétricas que dividem os ricos inacreditavelmente ricos, os inacreditavelmente-novos-ricos e os pobres, ainda inacreditavelmente mais pobres, de Luanda. Hoje, alguém morreu de cólera, de paludismo, alguém arrasta feridas de guerra pela cidade, vende cigarros na rua, lava o corpo na lama, chora ausências de nutrição, procura comida na lixeira, foi assaltado por um miúdo, bebeu de mais, fumou de mais, abusou, foi abusado, encontrou mais uma jazida de diamantes, inaugurou mais uma torneira de petróleo. E alguém terá de abandonar o musseque com a família às costas, a fugir das águas da chuva, do polícia que lhe diz para parar, para pagar, «pentear», dar «gasosa», a correr de encontro à fome que já tinha, nos dias pesados do calor, sem mais nada que isso, só uma estranha alegria que faz o angolano sempre sorrir. «Estamos sempre a subir». Tão certo como o contrário.



Nessa noite, cansada de trabalhar, cansada porque não tem trabalho, sem coragem para levantar-se entre os despojos do seu caos, essa Luanda estava incapaz de comparecer ao evento. Fazia anos - não seria elegante dizer quantos - Isabel dos Santos, primogénita do Presidente José Eduardo dos Santos, que escolheu o Miami, um bar da moda na ilha de Luanda, do qual é sócia, para celebrar com coisa de setecentos amigos chegados. Todos os convidados, escrutinados por um pelotão de seguranças, deviam vestir de branco. Abaixo do bar, numa enorme tenda sobre a areia da praia, seria servido o jantar. Ao lado, separado por um passadiço, brilhava a jóia da coroa, o bolo de anos, num altar envolto em arranjos florais. Por trás, fogo de artifício para a primeira fatia do bolo. Um grupo de «capoeira» articulava-se onde podia. Seguranças ofereciam olhares atentos, absolutamente convencidos do seu estado incógnito. Os convidados sacudiam o protocolo. «Boa party», dizia o novo ao velho, olhos à deriva. «Estas damas não são do teu campeonato», advertiu o «cota».
Isabel chegou dentro de um vestido em fundo branco, com estampado exclusivo de flores magenta e rosa - evidente como uma piscina olímpica no deserto - com Sindika Dokolo, o marido, filho de um banqueiro congolês, herdeiro prematuro da condição de milionário. Em séquito, abriram alas vagarosamente, consentindo que os desfrutassem. Três amigas aproximavam-se a grande velocidade, instáveis em salto alto, voando para um abraço cúmplice. «Huammm!!!» Beijo na bochecha da filha do Presidente. «Parabéns, querida! O teu vestido é lindo. Estás boa?» Tudo indicava que sim. «Ainda bem que vieste», disse Isabel. «Ya. Como é que eu ia faltar?!», declarou a amiga. As outras duas, de sorriso aberto, espreitavam com os queixos em posição oftalmológica nos seus ombros. Que desculpassem, Isabel tinha afazeres protocolares.


Convidadas da festa da filha de José Eduardo dos Santos: «dress code», branco
Depois de um jantar bem regado, com interrupções fotográficas para a «Caras» angolana, decorria animadíssima a noite. Ocasião para iniciar a travessia para o bolo. Champanhe ao alto à saúde de Isabel, uma das empresárias mais poderosas de África, movendo-se em áreas multimilionárias como o petróleo ou os diamantes. Na última visita a Angola, o primeiro-ministro José Sócrates elogiou o seu empreendedorismo, endereçando-lhe convite para ministrar em Lisboa uma conferência sobre dinamismo empresarial. Talvez fosse aí o momento para explorar a contradição destes números: crescimento da economia angolana ao ano - 18 por cento; taxa de desemprego - 80 por cento. Ali, não era de certeza. Explodira alegria e fogo de artifício. O bolo de aniversário tinha agora um cenário de chuva brilhante, que iluminava o mar e os guardas que no pontão embalavam metralhadoras kalashnikovs.
Descera a madrugada em arromba. Os mais idosos começavam a desistir. Entravam outros, «party-people», «subjet-set» generalistas, a arejar as narinas com leques coloridos, envergando óculos panorâmicos, próprios para o amanhecer na pista. Excelente média de empresário por metro quadrado. O Mister África 2007, que agora chegava, cruzava-se com um deputado, de saída. A sociedade emergente desfilava, celebrando-se. O Miami era agora uma mini-Ibiza. O balcão do bar segurava um amontoado de gente, escorriam suores na pista, corpos apertavam-se, soltava-se África. Com a luz da manhã, os resistentes abandonaram.



À tarde, na esplanada de um restaurante chinês, na ilha de Luanda, hoje mais uma península, a cidade aparecia de novo deslumbrante, a coberto da distância, só interrompida por barcos de pesca rudimentares ou pelos iates que balouçavam ancorados. Câmara, luzes, acção: «Incrível! Como é que pode?», frase da Melhor Actriz angolana de telenovelas 2006, Tânia Bwity. Decorria a gravação da próxima telenovela da Televisão Pública de Angola, de título «Crime e Punição» - nada de Dostoievski -, sob direcção e argumento de Aloísio Filho, brasileiro, contente por ali estar, a bordo de um carro-digital com um estúdio móvel do mais moderno que é possível. «Incrível! Como é que pode?» Take 2. Os artistas, diz Tânia, são em muitos sentidos o espelho convexo da Angola que se mostra ao mundo, e ópio para os 12 milhões no anonimato, que usa quilómetros de puxadas de fios eléctricos só para os ver. «Incrível! Como é que pode?» Take 3. A avaliar pelo cenário, nada de errado.


INTERIOR da UNYKA, loja do estilista Rucka Santos, uma das mais luxuosas de Luanda (à espreita, um sinal dos tempos: uma cliente chinesa)
A luz do dia começou a esconder-se. Do outro lado, Luanda adquiria brilho, camuflada sob as luzes de uma urbanidade que não tem. Esconde tantos segredos esta cidade, tantas singularidades, um fosso social que determina tudo ou nada, onde bolina uma classe média tímida, em boa parte expatriados ao serviço de multinacionais. Dizia alguém à Rádio Nacional sobre o problema dos buracos, que entopem o que está sobrelotado: «Como resolver o problema? Comprando um jipe.» Faz isto tanto sentido como a insegurança ser um excelente negócio para quem vende a segurança. Ou como estradas tão más entre províncias resultam num enorme estímulo para as companhias de aviação privadas. Angola está em bruto, como um diamante, mas não sofre de ingenuidade.
De modo que se torna difícil massificar as modas internacionais, enquanto na rua há miúdos a coçar os piolhos, ou democratizar o luxo num universo transversal que habita condomínios de pobreza. Luanda é uma festa de crianças onde poucos têm altura para chegar à caixa das bolachas. É, portanto, o que é. Mas é também o inverso. Sol e alegria, desprendimento, ruído, vida vivida rápido, «ya» e «tásse bem». O ritmo vagaroso é apressado. A sua pressa tem muito tempo. O tempo tem relógios à venda, a bom preço nos zungueiros (vendedores de rua), directamente de um retalhista da R.D. do Congo. Que «take» reservará o futuro?


A BORDO de um iate, a caminho do Mussulo, recanto paradisíaco de Luanda Sul
Se for da moda angolana, ao fundo está um sorriso. Os estilistas de Luanda, em processo de internacionalização, são como uma S.A. que se exporta, importando tecidos para as suas criações. Há tradicionalistas, retro-vanguarda, corte clássico, puristas, tribalistas, neoliberais, esquerda «fashion», os que estudaram Gestão em Lisboa, outros advocacia em Londres, uns que tiveram educação nos EUA, outros ali mesmo. Todos tomaram novo curso neste sector específico do universo amplo da futilidade. E há Shunnoz Tião, transcendência, antigo estudante de Psicologia, autoproclamado inventor da Pensologia, segundo o autor, uma espécie de corrente intelectual, com artes de igreja alternativa. «Não somos nada», diz Tião. «Não somos carne», diz Tião. Tião, contudo, desenha roupas para a carne que as pode comprar, vive da carne onde passeiam os exemplares com a sua assinatura. Com Tekassala, parceiro de ateliê, foram os Estilistas do Ano em Angola. Hoje, para encontrá-los é preciso viajar para as grandes capitais europeias, nas teias da globalização. O mesmo aconteceu com Rucka Santos. A sua loja, UNYKA, vende a exclusividade que o dinheiro pode comprar. Rucka organizou recentemente o espectáculo de Missy Elliot, embaixadora multimilionária do «rap» americano, que veio a Luanda ver como Angola é pobre entre o aeroporto e a sala de espectáculos. «Ela ficou muito impressionada com as mulheres com a fruta à cabeça», diz Rucka.


Vista da marina, onde iates e barcos de pesca tradicionais partilham águas
«O mercado é reduzido, mas abastado», garantem. Tanto vai ao cabeleireiro a Paris, como lhe pode apetecer comprar-lhes uma colecção inteira e deixar o troco. Na «chaise longue» social, essa Luanda é como se fosse a capital do paraíso, pequeníssima, tão real como a outra, imensa e submissa, atada de pés e mãos como um gigante em Liliput. A sobrevoar a cidade num helicóptero particular, em direcção ao iate, na travessia para uma mansão, nem se notam as evidências. Os grandes problemas tornam-se pequenos, minúsculos, ínfimos. E desaparecem, voando para longe na nuvem doce de um Cohiba à brisa da utopia.
Vive em Luanda uma cidade cor-de-rosa, de festas, brindes à saúde dela própria, em pose para a «Caras», por acaso propriedade de Tchizé dos Santos, filha do Presidente. O angolano tem natureza vaidosa, gosta de exibir. A «Caras» dá os «high-lights» de tudo a quem nada tem. Os luxos, as recepções oficiais nos jardins da Cidade Alta, no palácio oficial do Presidente, as galas, as festas no Mussulo, recanto paradisíaco de Luanda Sul, navegando para lá nos seus iates, trajando lantejoulas e «smokings», com vista para uma cidade feroz, nas ruas de outra realidade.


Festa de praia
Não seria por isso que Luís «Dufa» Rasgado, destacado empresário de Benguela, com vínculo ao MPLA, deixaria de assinalar o seu 60.º aniversário. A sociedade das aparências - ou das evidências - celebrava mais uma noite. Dizia no convite para se usar indumentária adequada, as melhores jóias, um «je ne sais quoi» de qualquer coisa, fosse o convidado pele de lobo em cordeiro ou exactamente o contrário. Fosse como fosse, ao entrar deixaram para trás uma rua cheia de guardas. E estes deixaram para trás as barracas e os milhões que nelas habitam, que deixaram para trás a província, as origens, longe, em sítios onde hoje só moram os velhos e a incapacidade de voltar. Para trás, musseque e pobreza. Para a frente, acepipes.
Gin-tónico, talvez? Whiskie irlandês com duas pedras de gelo purificado? Uma cervejinha importada a estalar? Salgadinho? O aniversariante, de «smoking» branco, da mesma cor do seu sorriso, estava à porta do Endiama, uma casa colonial de luxo no bairro de Miramar, onde fica a residência não-oficial do Presidente, assim como a «Casa Branca», que foi morada de Jonas Savimbi, líder defunto da UNITA. Abraço, beijo, agradecimentos pela comparência. «O trânsito está um inferno», atirou uma convidada, acertando a traseira do vestido, por onde escapava um pedaço de roupa interior. «Não se pode», devolveu outra, irrepreensível em corte clássico sobre camisa de folhos, penteado de fixação improvável.


SHUNNOZ TIÃO desenha roupas para os ricos. A sua parceria com Tekassala garantiu-lhes o título de Estilistas do Ano em Angola
Muito difícil o trânsito na cidade. Se chove, pior. Os assaltos também não ajudam. Luanda foi desenhada para 500 mil pessoas. Tem hoje mais de cinco milhões. Nada flui. Só os mil esquemas que a rua oferece. Aliás, vende. Nada é de graça. Tudo se paga. Tudo falta. Tudo se arranja. Só os limitados conhecem como são duros os limites. E guardam isso para eles, como se guardassem um segredo. Os que navegam na zona franca do «cash-flow» saboreiam esta nova Angola que superou o colonialismo português, mas não o arrumou, que saiu de uma longa guerra civil, mas não sarou todas as feridas, que tem abundância de petróleo e diamantes e transborda pobreza a cada rua. E transborda riqueza, como certa roupa interior num vestido apertado.
É a Angola dos descendentes da ascendência, ínfima minoria. Alto negócio, carro de luxo, charuto, helicóptero, iate e champanhe, apartamento na cidade e casa no campo, da política de relacionamentos, do apetite sôfrego das economias internacionais. Crescem em Luanda prédios moderníssimos, esguios por questões de propriedade privada e valor de metro quadrado numa das cidades mais caras do mundo. Mas os passeios e as estradas em redor são feitos de buracos públicos. As chinelas havaianas que nelas passeiam - baptizadas «facilitas» -, tornaram-se mito, calçaram todos os pés, foram augúrio de modernidade. Mas os pés continuam sujos. E nada podem, caso se cruzem na rua com os pneus de um jipe topo de gama. O trânsito estava um inferno? Provável.


ESTIVANDRA Oliveira, Miss Angola 2006, fotografada na varanda da suite do Hotel Alvalade, em Luanda
Os convidados integravam-se, escorriam pela cerimónia, mais descontraídos, segurando copos, descrevendo círculos. Uma bola gigante multimédia assinalava o evento: «Parabéns Dufa». Perto das mesas alongava-se um «buffet». Carnes, peixes, mariscos, frios, quentes, dentro de enormes caixas de cobre com tampa deslizante, para manter à temperatura exacta a comida. O vinho tinto devia estar a 16 graus. Para o Moët & Chandon, que começava a jorrar, o calor era inimigo da perfeição. Lá fora, dentro da enorme panela ao lume chamada Luanda, nas barracas onde não existe frigorífico e os escassos alimentos se conservam em sal, a Cuca, cerveja local, também sofre aquecimento prematuro. Tantas coisas dividem esse mundo deste, só mesmo imponderáveis os podiam unir num problema comum, sublinhando a diferença que os separa: uns incomodam-se porque não conseguem ter tudo. Outros sofrem porque só conseguem ter nada.
Na pista, meninas com traje de princesinhas rodopiavam alegremente. Por trás do palco, um desfile de doces e uma colecção de frutos. Ao lado, outra de frutos secos. Um conviva mais animado, que sabia do que falava em matéria de fruta seca, pegou num exemplar e declarou: «Este é bom para a virilidade», olhar malandro. «É... hermafrodita». Adiante. Repasto, sobremesa, mais brindes, discursos, mais champanhe, digestivos, mais champanhe e mais champanhe, champanhe para o momento da noite: Dufa dirigiu-se ao centro da pista, para soprar as velas. Seguiram-se horas de baile, comida, bebida, alegria.


OS RICOS são poucos e muito ricos. Os pobres são muitos e muito pobres. São dois mundos diferentes num convívio de vizinhos
Só a chuva deteve a festa, já de madrugada. De madrugada, o trânsito já não é um inferno. O inferno dorme a essa hora. Mas a chuva vai acordá-lo em sobressalto, despertando a Angola que não vai à «vernissage» e ao beberete, não tem preocupações com os «down jones» e o preço do barril de crude, não bebe conhaque em balão aquecido, não tem um todo-o-terreno Porsche e conta «off-shore», nem é servida em bandejas de prata. Essa Luanda, desenraizada, agoniza em contrastes. E sorri. E, sorrindo, é a Angola perdedora, neste jogo de subserviências. Tem a Babilónia debaixo dos pés, mas não encontra o caminho no meio do lixo e das barracas, a tropeçar no vácuo, a cair em nada. Se escavar um pouco do seu solo, é provável que encontre petróleo ou diamantes. A escavar no seu musseque, só encontra musseque.
Reportagem de Luís Pedro Cabral (texto)
e Sandra Rocha/Kameraphoto (fotografias),
em Luanda

terça-feira, abril 22, 2008

H2O lusa continua em ebulição!

NO MEU CANTO
Viajando pela poesia de Agostinho Neto
Celso Malavoloneke

Esporeado por uma polémica, polémica essa causada pela arrogância dita «democrática» de uma egocêntrica percepção do monopólio da verdade – revisito a poesia de Agostinho Neto. Não do Agostinho Neto nacionalista que foi, tal como Holden Roberto, Jonas Savimbi, Lúcio Lara, José Ndele, Mário de Andrade e tantos outros. Não. No meu imaginário surge neste momento o Agostinho Neto que burilou o sonho nacionalista que todos eles sonharam, mesmo daqueles cujos caminhos seguiram rumos diferentes, o «caminho do mato, o caminho do soba, o caminho da Lemba, Lemba formosa». Esta é a poesia que degusto. A mais elementar modéstia impede-me de apregoar quaisquer competências para perceber poesia. E preciso? Quando o meu coração se mexe de kaxêxe e a minha alma imagina «o som de grilhetas nas estradas; o canto de pássaros sobre a verdura húmida dos capinzais...» de um período negro na história da minha Nação que alguém – nesse caso Neto – imortaliza na lúdica estética da gramática teimosa do «havemos de voltar... à Angola libertada; à Angola Independente…» não está tudo dito? A ser assim, confesso não perceber «rigorosamente nada de poesia». Prefiro ficar no conforto da minha percebida pequenez intelectual. Porque não quero precisar de intelecto para a poesia, e nem quero perceber poesia, para já. Eu quero senti-la. Quero ouvi-la com a alma. Deixa-la colorir a minha imaginação, e encher o coração com este orgulho de ser parte desta terra e desta gente, orgulho esse para passar à minha prole. Para quê perceber o que posso sentir, e sentindo faz-me bem? Não é esse o papel essencial da Arte e da Literatura? No dia 15 de Abril deste ano, o poeta, contista, jornalista e romancista Mia Couto homenageando o escritor brasileiro Jorge Amado dizia o seguinte: «Deve ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge Amado fez pela projecção da nação brasileira mais do que todas as instituições governamentais juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas instituições, mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura. Nesta sala, estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e criaram pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e Caetano Veloso. Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos países que encontraram luz e inspiração na vossa música, na vossa poesia». O mesmo se poderia dizer de Agostinho Neto. O seu mérito como poeta terá sido transformar os ideais nacionalistas em arte literária, e com isso fazer uma poderosa arma de luta. Ter a humildade – que porventura ter-lhe-á faltado como político – de submeter-se ao crivo da crítica na construção de uma obra artística, que constituísse uma fonte de inspiração na construção de uma Nação. Dali que o «não direi nada, mesmo que me espanquem, mesmo que me ameacem de morte. Nada sou, renuncio-me, atingi o zero» atinge para tantos angolanos – sendo verdade que a outros não – aquela sublimidade típica das verdadeiras obras de arte. Sendo impossível dissociar o nacionalista do poeta, o político do visionário sonhador, sou daqueles que confesso-me profundo admirador da sua poesia. E continuarei sendo-o, mesmo que me chamem ignorante em termos de poesia. Mesmo ainda que o impropério venha de um escritor cujas obras para mim têm o mesmo valor literário que a poesia de Agostinho Neto. Convenhamos, porém, que nem todos os que se auto-intitulam donos da competência de perceber a poesia em questão têm, na minha opinião, o mínimo de vivência e exposição para, de perto ou de longe, poderem ser confundidos com angolanos. Tanto os que a atacam gratuitamente como os que defendem arruaceiramente. Será um sinal do complexo das minorias que procuram fazer-se ouvir pelo volume do ruído que produzem? Ao José Eduardo Agualusa, uma réplica: se por gostar desalmadamente da poesia de Agostinho Neto não percebo rigorosamente nada de poesia, então o senhor percebe ainda menos – se é que isso é possível – do papel essencial da Arte e Literatura na vida dos povos. Elegantemente incomodou-se a explicar-lhe o Luís Kandjimbo. Ao Artur Queiroz outro recado: a poesia de Agostinho Neto não precisa de ser defendida com linguagem de carroceiros brigando por uma picha de cerveja barata numa taberna qualquer. A não ser que vocês os dois decidam fazê-lo algures em terras lusas, onde essas baixarias parecem confundidas – confundibilizadas, como diria Paulo Tjipilika – com democracia. Então porquê não irem para lá e entabernarem-se, que assim deixa de ser problema nosso – etu mungwetu, que aqui nascemos, aqui ficámos, aqui sofremos, miseramos, esfomeamos e brigamos na esperança de com a Terra um dia crescer e sorrir. Etu mungwetu que na nossa ignorância até sabemos «criar amor com os olhos secos!»
Recado I
Ao José Eduardo Agualusa, uma réplica: se por gostar desalmadamente da poesia de Agostinho Neto não percebo rigorosamente nada de poesia, então o senhor percebe ainda menos – se é que isso é possível – do papel essencial da Arte e Literatura na vida dos povos
Recado II
Ao Artur Queiroz outro recado: a poesia de Agostinho Neto não precisa de ser defendida com linguagem de carroceiros brigando por uma picha de cerveja barata numa taberna qualquer
Recado III
A não ser que vocês os dois decidam fazê-lo algures em terras lusas, onde essas baixarias parecem confundidas com democracia. Então porquê não irem para lá e entabernarem-se, que assim deixa de ser problema nosso?

Onde ficaram as bombas, senhor cónego?


A morte lava mais branco
Autor: Carlos Esperança
O funeral do cónego Eduardo Melo, da Sé de Braga, deu origem a uma importante concentração fúnebre.

Uns foram para ter a certeza de que ficam livres de uma testemunha incómoda, outros para prestar homenagem a um homem que não hesitaria em defender a Igreja à bomba.

Não foi a devoção que o celebrizou, foi o poder que o tornou temido e respeitado. A estátua que lhe fizeram não foi uma homenagem às ave-marias que rezou, às missas que disse ou à frequência com que sacava do breviário. Foi a paga dos favores que fez, das cumplicidades que teceu, do poder que detinha. Não era homem para andar de hissope em punho a aspergir beatas que arfavam lubricamente à sua volta antes da Revolução de Abril, era um homem de acção. Do futebol à política. Do salazarismo ao MDLP.

O cónego Eduardo Melo pode não ter sido o responsável pelo assassínio do padre Max, cuja morte ficou impune embora se saiba a origem dos explosivos.

Na morte teve a acompanhá-lo o inevitável presidente da Câmara, Mesquita Machado, o Governador Civil e um secretário de Estado, além de gente anónima que aproveitou os autocarros gratuitos para ir a Braga.

O bem-aventurado cónego, que nunca renegou a sedução por Salazar e o aborrecimento pela democracia, foi a enterrar quatro dias antes do 25 de Abril que tanto detestava. Se Deus existisse tê-lo-ia deixado viver até ao 28 de Maio. Era uma data mais grata à sua alma de fascista, uma consolação para quem nunca se adaptou à democracia.

segunda-feira, abril 21, 2008

Agualusa no Novo Jornal de 19 de Abril de 2008



NOVO JORNAL DE 18 DE ABRIL DE 2008

Dissidência poética ou a poética da dissidência
Neto foi buscar parte da sua motivação poética a Senghor mas não dispunha nem do talento deste, nem da sua vasta erudição

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
HESITO UM POUCO em aceitar o desafio do Novo Jornal para explicar mais deta¬lhadamente os motivos de algumas afir¬mações que fiz em recente entrevista ao Semanário Angolense. Fiquei surpreendi¬do com a desmesurada atenção que me¬reci por parte da imprensa angolana e em especial do Jornal de Angola, cujo director me dedicou dois editoriais! Aparentemen¬te o director do Jornal de Angola prefere discutir poesia a meditar sobre os proble¬mas sérios que afligem o nossso pais. Não sei se nos devemos alegrar ou revoltar. Exerci durante longos anos o oficio de crí¬tico literário em publicações muito respei¬tadas, como os jornais Público e Expresso, de Portugal, ou ainda a revista Colóquio Letras. Estou consciente, não obstante, do reduzido valor das minhas opiniões li¬terárias. Não são suficientes para autori¬zar, ou desautorizar, quem quer que seja. São simplesmente as minhas opiniões. Para me fazer compreender melhor, quan¬to ao assunto que me traz aqui, talvez seja útil comparar a obra e o trajecto de Agos¬tinho Neto com o de outro grande nome do nacionalismo africano: Leopold Sedar Senghor. Agostinho Neto e Leopold Senghor tiveram percursos aparentemen¬te semelhantes. Senghor foi o primeiro presidente do Senegal. Agostinho Neto foi o primeiro presidente de Angola. Am¬bos publicaram livros de poesia. Olhan¬do com mais atenção, porém, começam a perceber-se as diferenças. Agostinho Neto foi um político que frequentou a poesia -por razões políticas. Senghor foi um poe¬ta que frequentou a política - por razões poéticas. Leopold Sedar Senghor era um homem com uma sólida formação clássi¬ca. Foi, com Aimé Cesaire, o principal im¬pulsionador do movimento da negritu¬de. Ao mesmo tempo sempre demonstrou um enorme orgulho por aquilo a que ele chamava „a minha gota de sangue por¬tuguês": „0uço no mais íntimo de mim o canto de voz umbrosa das saudades. Se¬rá a voz antiga, a gota de sangue portu¬guês que ascende do fundo dos tempos? / 0 meu nome que remonta às suas fon¬tes?/ Gota de sangue ou então Senhor, a alcunha que um capitão pôs outrora a um bom de um marujo? Reencontrei o meu sangue, descobri meu nome, o ano passa¬do em Coimbra, em plena selva dos livros" (Elegia das Saudades). Senghor, recordo, foi o primeiro africano a licenciar-se pe¬la Sorbonne e o primeiro a ocupar um lu¬gar na Academia Francesa. Deixou onze li¬vros. Uma obra surpreendente, original, que foi beber quer à Grécia Antiga quer a certas tradições africanas. Agostinho Ne¬to deixou-nos no conjunto menos de uma centena de poemas breves. Uma produção tão escassa teria de ser realmente extraor¬dinária para que a podessemos considerar relevante - ora, sinto muito, tal não se ve¬rifica. Agostinho Neto foi buscar boa parte da sua motivação poética a Senghor, mas não dispunha nem do talento deste, nem tão pouco da sua vastíssima erudição. Os versos de Agostinho Neto cumpriram com sucesso a função que se propunham, ou seja, a de chamar a atenção para a injuntiça colonial, mas, ao contrário dos de Leo¬pold Senghor, dificilmente ganharão o fu¬turo.
Antes de mim já outras vozes muitíssimo mais autorizadas haviam afirmado o mes¬mo. Limito-me a recordar aqui o poeta cabo-verdiano João Vário (esse sim, extra¬ordinário!), o qual em várias ocasiões se referiu a Agostinho Neto como um poeta menor. 0 escritor Germano Almeida refere-se numa das suas crónicas - sempre di¬vertidas e saborosas - a uma dessas oca¬siões.
Talvez se justifique aqui acrescentar, pa¬ra concluir, que gosto muito de escutar os versos de Agostinho Neto musicados por Rui Mingas. Gosto deles, como cente¬nas de milhares de angolanos, devido à ar¬te de Rui Mingas e também porque fazem parte do meu imaginário, e isto indepen¬dentemente da sua qualidade literária. Quando quero ler grande poesia, então procuro outros autores. E era aqui que eu queria chegar na entrevista ao Semanário Angolense. Para se escrever grande poe¬sia é preciso primeiro ler os grandes poe¬tas universais. Acreditar que temos mui¬tos poetas excelentes pode melhorar a nossa auto-estima mas não faz com que tenhamos de facto muitos poetas exce¬lentes. Podemos até convencer-nos a nós, mas não convenceremos nunca o resto do mundo.

domingo, abril 20, 2008

Ortográficamente de acordo!






MEU CARO Dia síguinte
Mincontro nas férias de dós més aqui mesmo neste Portugal na primera ves que lhe consigui . Gostei mesmo daqueles senhor afarar bem mesmo , tinha lá o Dotor Maôra más a Dotora Sexo , que sabem bém dos assunto mas principal dos principalmente mesmo eu gostei foi de ver aquele troncudo que diz que ele aí num tem nada a ver com política e que o que ele sabe só é ciéncia . Pra rusumo , cumo aprendi mesmo naqueles tempos em quinda era analfabeto e só sabia qum dia os deuses do hemisfero norte tinham mesmo inteligenca pra inventar esta cosa dinternet , topei mesmo cá pessoas que andam nas tácticas e nas estratégias pra consiguir conséquéncias .Náo se bem o quisto é . Mas vamos no assunto que mi trás aqui : uma coisa sáo mesmo os analfabeto da minha terra di Luanda , outra coisa é esses da Universidade Agostinho Neto , uma coisa é os sinhores pegarem em professores portuguèses e mandarem em todos os bocados do espaco onde se deviam falar portugués , outra cosa é aqueles que lhe querem o portugués bem longe , lhe preferem o ingrés , outra cosa é dinheiro pra isso que devia sair do bolso dos Estados de lingua portuguesa , mais ainda do brasileiro que está cheio dele , embora cum muitoss pobres que a gente vê na tv . Cumo em todos lados . Uma cosa é mesmo Portugal , esse grande Portugal do Pessoa mundial da esquina e do Camões das esquindivas do mundo das garinas . Uma coisa é mesmo alguém tentar cafricar alguém , outra coisa é com gravata e tudo aprender bem escrever com ponto ,virgula , chapéus, tilis , e outras cosa. Uma cosa é eu mesmo que tenho mania que no meu bairro lhes falo bem do português falado , outra cosa é mesmo português de escrita que nunca lhe consegui , mas ainda o protuguês da origem perfeito com todos os tiques e todos os taques. Mas meus senhor , mi disculpem ainda estar falar como cidádáo das rua do meu bairro . O probléma é só este : Lhe discutam benzinho , num importa com cidilha ou sem , num importa com précisas palavras de português ou não . Num mimporta que os do pórto lhe digam Maora , us di sáo tomé lhi digam Atêmanhã , us de meu bairro lhi digam Che não é de Guevara , u otro dos algarves u de Luanda lhe digam ténho ou na terra daquele loco qui dis o grado azoigô i foi atupêido . O quimporta é só três cosa , pra mim e pros meus que mandam a xingar que tás a ver a gente vai mesmo é farar francés , ingrés u chinés . Isto assim num tem conserto ou concerto , de piano ou de sapato num sé . O que minteressa é tudo mesmo da política e de quem manda na política . O resto que esses cientistas lhe discutam tudo o que quizerem , elaborem já um manual daqueles cum kilómetros de esplicassóes , mas parem só de falar de ciência na nossa frente . Neste cáso é Ciência Política precisa ! Eu só quero saber é três medidas de política :

1º quem manda na lingua de origem em Portugal é os professores portugueses , brasileros ou de Timor ou Caboverdianos e de Goa ;

2º quem pode arranjar manéra de consiguir alterar ou continuar a manter o Poder Político atual no domínio da língua de origem em Portugal ;

3º quem manda nas coisas do sentido pra que a gente escolha mesmo se quer o protuguês com não sei quantos centenas de milhões a falar no mundo do mundo ; ou se quer , como a Isabel de Lima , caté era Ministra e tudo e que dizia , quer dizer , diz , que as diferenssa vão cada vez ser maiores nas lingua de todos o antigo espaço imperial .

Nas Universidades dos cientistas e na rua . Por favor , bem rápido escolham só essas cosa toda da ciência proque a nós mesmo , éu mais os do meu bairro que lhaprendemos o protuguês de Portugal e procausa dos professores e da política já vão falando cumo João Melo , naquela mania do hábito da identidade , daqui uns ános , se num fórem rápidos em acordar , quer dizer , em fazér acórdo:

1º vos váo dizer vocês que querem protugues perfeito nas universidades ortogràficas que afinal suniram todos em volta do brasileiro como nova lingua principal no mundo e principalmente na ONU e eu e os do meu bairro alinhamos nisso pôs estrutura portuguèsa na lingua é tudo política nas nossas terras, vámos só infrente e é só acordar ortograficamente ;

2º vos váo poder encontrar nesses paises , todos saudosamente falando , no antigamente na vida , estou a imitar o Graca , uma lingua bem parecida no caboverdiano , em luta forte com os doutores lá do sitio que lhe preferem o brasileiro . Um fichado e o óutro aberto .

Proqué tudo uma cuestáo que fichar u di abrir . E quem vai escolher ? Se for aqueles Latinos que querem desarcordo e vão dixar a política mandar que angolano , brasiléro , moçambicano, caboverdiano , sáotomense ou timorenssse , mais macaista, perdão isso é nome dum português , macaenssse , váo ser luso -descendentes , claro que o portugués deles vai mesmo ser dado nas Universidades de todos os países do espasso imperial antigo , como o Latim . Especialistas em ...portugués . Mi podem dizer que ortografia , linguagem , lingua , sintase , morfologia , ortikultura , e essas outras ciéncias tódas é tudo pra sinhores de gravata falar e queu nada tenho cuisso . Mas náo me podem dizér que épocas num fazem mudar as fase de ensinar portugués . Há vinte anos éra mésmo priciso na minha terra , travar , travar , travar . Quer dizér : egigir o portugués . Agóra , cum diferenssas outras que separam pessoas por classe sócial bem mais fortes , cuidado , vai ser preciso dichar abrir outra vés . Assim ? Che . Intáo méus filho num podem prender o queu num séi , o portugués de Portugal que pode ser mésmo , com alianças aqui e ali , politicando mésmo , tér força mésmo pra impór cada uma das suas razóes , num é milhor céder no acessório pra manter a conquista da estrutura ...estrutura , méus ! , quaver uns latinos quandam , no século vinte um a dizer que política num é cum eles . Possa pá . Discurpa só . Isto tá dimás . Se num quers mésmo , oh meu , aliançamos todos , déxa só o Brasil inda mandar na política qua gente se alianca também pra lhes responder contra as telenovelas que todos dias estáo sempre conosco , mas vámos só pro futuro e deixamos o respéto na perfecçáo ,che...perfeí-
iissão , num lhe conssigo dizér. Bem .Meu Caro Dia Siguinte : fas só incontro entre os descendentes e décha só os latinos cu latim .

Tinha dito , discurpa, lhi dissi .
assinado
Um Ángoláno em portugali.

Faleceu em ultimo um dos primeiros







Morreu Aimé Césaire, o poeta da “negritude”
Aimé Césaire, 1913-2008
Uma das principais vozes na luta contra o colonialismo francês
Morreu Aimé Césaire, poeta da “negritude”
Aimé Césare, uma das principais vozes do Movimento Negritude, morreu hoje aos 94 anos, num hospital em Fort-de-France. O escritor de Martinica encontrava-se hospitalizado há cerca de uma semana devido a problemas cardíacos.
Ao lado do senegalês Léopold Senghor e Léon-Gontran Damas da Guiana, Césaire participou na corrente da “negritude”, um movimento político e literário criado nos anos 30 para combater o colonialismo e racismo francês. O autor do “Diário de um Regresso ao País Natal” dedicou toda a sua vida à poesia e à política, tendo sido presidente da Câmara de Fort-de-France durante 56 anos (1945-2001) e deputado (1945-1993).
Na comemoração do 94º aniversário de Aimé Césaire em 2007, o presidente francês homenageou o poeta, apelidando-o de “homem de acção”, “portador de uma mensagem de paz, de tolerância e abertura”, numa carta tornada pública pelo Eliseu. Contudo, a relação entre o poeta e Nicolas Sarkozy nem sempre foi pacífica. Em 2005, Aimé Césaire recusou encontrar-se com o então ministro do Interior numa viagem de Sarkozy às Antilhas,que depois viria a ser anulada. Finalmente, em 2006, o poeta recebeu o actual Presidente francês.
Além de poesia, Aimé Césaire tem uma vasta obra publicada nas áreas do teatro, ensaio e história. Em Portugal estão publicadas, entre outras, as obras “Discurso Sobre o Colonialismo” (1978) e “E os Cães Deixaram de Ladrar” (1975).
Filipa Cardoso
Fonte: Público
Aimé Césaire homenageado em únissono em França
Paris, França (PANA) - O Presidente francês Nicolas Zarkozy declarou quinta-feira que “toda França está enlutada” pelo falecimento na manhã do mesmo dia em Fort-de-France (Martínica) do escritor, poeta e político martiniquês, Aimé Césaire, aos 94 anos de idade.
“Quero saudar a memória de um grande poeta que adquiriu a sua notoriedade pela qualidade da sua escrita. Ele foi, com Léopold Sédar Senghor (primeiro Presidente do Senegal), promotor do conceito de Negitude”, indicou Sarkozy, associando a sua voz à homenagem unânime ao intelectual martiniquês.
“Pelo seu apelo universal ao respeito pela dignidade humana, à tomada de consciência e responsabilidade, ele permanecerá um símbolo de esperança para todos os povos oprimidos. Continuará a ser para nós todos uma das figuras emblemáticas da classe política ultramarina”, sublinhou.
Por sua vez, o secretário-geral da Organização Internacional da Francofonia (OIF), Abdou Diouf, saudou “a memória de um homem que consagrou a sua vida aos múltiplos combates levados a cabo em todos os campos de batalhas onde estava em jogo o destino cultural e político dos seus irmãos de raça”
“Aimé Césaire manifestou admiravelmente nas suas escritas aquilo que uma ilustre figura do surrealismo qualificou de ‘talento de canto, a capacidade de recusa e o poder de transmutação’”, escreveu o ex-chefe do Estado senegalês, saudando “o homem que viveu a sua francofonia na abundância das suas obras”.
Para o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner, Aimé Césaire ficará “o poeta e dramaturgo inspirado na negritude que ilustrará a vocação da França para o universalismo e os seus laços profundos com os Caraíbas, as Antilhas e o continente africano”.
“Para todos os combates que levava pela humanidade, Aimé Césaire foi, como ele próprio o desejava, nas suas primeiras obras “Cahier d’un retour au pays natal” (caderno de um regresso ao país natal), um judeu, um cafre, um hindu de Calcutá, etc”, disse Kouchner.
“França não o esquecerá”, assegurou o chefe da diplomacia francesa, convidando os institutos e centros culturais franceses no mundo a renderem nos próximos dias homenagem “a esta grande figura humanista valorizando a riqueza e a diversidade da sua obra”.
Num comunicado publicado em Paris, a Associação Parlamentar da Francofonia (APF) afirmou que, “ao exemplo do seu irmão Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire contribuiu para a existência de uma francofonia de diversidade, que respeita o génio dos povos”.
“Os parlamentares francófonos lamentarão este homem de letras, um dos grandes poetas do mundo francófono, ilustrador incomparável da contribuição das línguas e das culturas para a história universal”, estimou a APF.
Por seu turno, o primeiro secretário do Partido Socialista Francês (PS), François Hollande, sublinhou que Aimé Césaire defendeu, enquanto político, durante toda a sua vida, os valores da Esquerda.
“Ao longo dos seus mandatos de governador, deputado de Port-de- France, actuou ao lado dos que lutam pelo reconhecimento dos seus direitos e da igualdade social”, insistiu Hollande.
O presidente da Assembleia Nacional francesa, Bernard Accouye, anunciou quinta-feira ao fim da manhã que “uma homenagem particular” será rendida a 29 de Abril a Aimé Césaire que representou sem discontinuar a Martínica no Parlamento francês de 1946 a 1993.
Dramaturgo, poeta, ensaista e romanceiro, Aimé Césaire foi, com o senegalês Léopold Sédar Senghor e o guianês Léon-Gontran Damas, o fundador do movimento da Negritude, o orgulho de ser negro.
Convicto de que o combate deveria começar onde tomou raízes a opressão, Aimé Césaire tinha convidado as diásporas africana e antilhana a voltarem à “terra natal” numa colectânea de poesias intitulada “Cahier d’un retour au pays natal” publicada em 1939.
Depois publicou “La tragédie du roi Christophe” (A Trágédia do rei Christóvão”, uma peça teatral que se tornará numa clássica dramaturgia negro-africana”.
Fiel às suas convicções políticas iniciais, Aimé Césaire recusou-se a receber em 2005 em Fort-de-France Nicolas Sarkozy, então ministro francês do Interior, a quem atribuia a culpa de uma disposição da lei francesa que realça “os benefícios da colinização”.
Quando foi abrogado o artigo da lei controversa, Sarkozy acabará por ser recebido por ele dois anos mais tarde enquanto candidato da União para um Movimento Popular (UMP, partido no poder na França) à presidência da República.
Fonte:Panapress

quarta-feira, abril 16, 2008

Luiz Pacheco também falou de Agualusa em 2007



Luiz Pacheco
- portal oficial não-oficial -

"O Luiz Pacheco é provavelmente o maior filho da puta, a pessoa mais corrosiva, mais intratável que há, mas eu gosto dele. Não sei porque mas gosto dele. O Luiz tem a capacidade de dizer o que pensa, de dizer mesmo tudo o que pensa, mesmo o que não poderia dizer(...)"
Publicado por amnésia

Correio Domingo


2007-04-08

Luiz Pacheco
Sócrates? Quem é? Não o conheço

Os óculos pesam nos olhos que cegaram. À cabeceira, o jornal ‘Avante’ e um livro de José Gomes Ferreira não são bibelôs, mas companhias. Luiz Pacheco, criatura de inteligência rigorosa, de lucidez sobrenatural, um livre pensador que disse e diz coisas que não são fáceis de serem ditas, está preso a um cadeirão, tem o robe vestido, o aquecedor ligado e uma manta para o frio não lhe magoar o esqueleto. Nasceu em Lisboa, na Rua da Estefânea, a 7 de Maio de 1925, pai de oito filhos – frutos de muitos amores, na vida escolhida, que foi dura por prazer, só fez o que bem entendeu.


O Estado Novo prendeu-o por politiquices e por ter amado menores. Frequentou o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras e a meio mandou o curso dar uma curva ao bilhar russo. Entretanto, a Inspecção de Espectáculos admitiu-o como agente fiscal, mas sedentarismo não combinava com o seu feitio. Preferiu a situação que considera invejável: desempregado. Depois, funda a editora Contraponto onde a corrente surrealista viu muitos dos seus autores publicados. Crítico literário e cultural, tradutor, colaborou em diversos jornais e revistas, ‘O Globo’, ‘Afinidades’, ‘Seara Nova’, ‘Diário Popular’. A sua escrita caracterizada de irreverência e de poesia esbofeteou a torpeza intelectual e desafiou o lápis azul da censura salazarista. Luiz Pacheco, que, em tempos, se fez sócio do Benfica para ir aos bailes e do Sporting para ir à natação, já não dança e não aprendeu a nadar. Apesar de ter andado perto do fundo, acaba por vir sempre à tona e ao seu ritmo.

Tinha dito que não saía do lar do Príncipe Real. Afinal, enganou-se. Vive com o seu filho.

Um gajo também se engana! A vida nos lares é uma espécie de regimento. Horários. E mais horários. E eu estive em três. O pior era a convivência com os moribundos e as moribundas. Deprimente. Os tipos iam buscar os velhos às camas e espetavam com eles num buraco a que chamavam sala do convívio. Qual convívio? Convívio nenhum! Velhotes com os olhos fechados e outros que estavam nas últimas. Ah... e havia um animador que se punha a contar de um até ao número dez. Quando a gente pensava que o tipo ia fechar a goela, desatava a dizer a numeração em forma decrescente. Ele fazia coisas incríveis! Mandava pôr a mão para cima, para trás, para os lados. Eu sei lá. O último lar era muito mau. Tinha lá uma mulata que era cleptomaníaca. Roubou uma velha muito afanada e eu também fui roubado.

O Luiz é que não está nada afanado...

Eu não estou afanado? A miúda deve estar a brincar! Eu não estou nada bem. Tenho muitas doenças, talvez umas vinte e três. Agora tenho uma m. chamada incontinência. Para um gajo é muito mau andar de fraldas. Mas a vista é a pior das mazelas.

Se fosse menos teimoso já tinha sido operado.

Não conte com isso! Tenho medo. E não é da anestesia. Medo das consequências. A merda da operação pode provocar um acidente cardiovascular e já viu o que era? Dizem que é coisa muito simples, mas isso são conversas. Nessa eu não caio!

Voltar a ler não é um estímulo?

Oh miúda, eu já li muito. Nem queira saber o que eu já li. Agora é a minha filha que me lê os artigos de jornais e algum livro que eu queira ler. Ocupo o raio do tempo a ver a RTP Memória. Estou a ver coisas que nunca tinha visto. Como por exemplo, o Júlio Isidro, o Zip-Zip. Gosto de ver velhadas. Entretenho-me com o humor fabuloso do Vasco Santana, do António Silva. O Solnado é uma merda. Uma invenção. Um disparate. O Herman José é diferente. Basta ser de origem alemã para saber o que está a fazer .

O melhor aluno do Liceu Camões gosta de velhadas...

Não me faça rir. Mas fui o melhor daquela malta toda. Entrei em 1936 e fiquei lá oito anos. Sentava-me sempre na carteira da frente, porque os meus olhos já eram dois sacanas. O avô desse tipo chamado Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Nós cagávamo-nos no gajo.

Quem eram os seus colegas?

Lembro-me do José Manuel Serra, que foi director do Teatro Nacional de São Carlos, Lobo Saias, que chegou a ministro, e outros.

Os liceus não eram mistos, portanto, miúdas não eram peras doces...

Imagine que nem podíamos chegar ao pé de uma escola feminina. Quando chegou a altura da universidade, o convívio não foi fácil. Não estávamos habituados. Pedir um lápis emprestado era cá uma trabalheira. Só para não haver contacto, deixávamos cair o raio do lápis ao chão.

Entretanto, os contactos melhoram... esteve preso no Limoeiro devido a aventuras amorosas.

Prenderam-me por razões políticas e por ter desflorado umas garotas que eram menores. Mas atenção: eu também era menor! Uma ocasião foram duas irmãs ao mesmo tempo. Foi cá uma chatice... Antigamente, rapazes e raparigas faziam o que hoje fazem, mas com a diferença: não tinham o à-vontade que existe hoje. A pílula foi a estrondosa revolução. Ouvir dizer que, até, os homens já podem tomar essa m. Eu nunca tomei. E sou contra o aborto. Hoje em dia as garotas têm muitas facilidades...!

Um rol de contraceptivos e a pílula do dia seguinte

O que é isso? O comprimido do dia a seguir à cegada?

Sim. É contra o aborto e a favor da despenalização?

É claro! Prender moças é um autêntico disparate. Mas há malta que diz que aborta porque rejeita ter filhos indesejados. Ouça cá uma coisa: uma rapariga que se deita com um rapaz sabe do risco. E há outra malta que diz que não consegue criar filhos. Mentira. É só conversa. Eu sem cheta, desempregado, tenho oito filhos. Uma vez, fui deixar um filho à Casa Pia. Se os ‘gansos’ eram bem tratados? Coitados. Aquilo era uma miséria.

Voltando à prisão. Como era no Limoeiro?

Uma prisão para os gajos que esperavam julgamento. Havia batota que não era a feijões, mas a dinheiro. Estava lá um enfermeiro tarado que vendia penicilina misturada com água. O refeitório era umas mesas corridas e havia um tipo que distribuía a comida. Os acordos davam direito ao prato ficar mais cheio. Naquela merda havia estratos sociais. A Sala dos Menores, a Sala dos Primários, para os estreantes, a Sala Comum, que era para a maralha, e a Sala dos Bacanos, onde estavam aqueles que tinham conhecimentos fora da prisão. Como eu. Da segunda vez que estive dentro, o Artur Ramos telefonou ao pai, que era director-geral da Penitenciária e pôs-me cá fora.

Um homem que nunca gostou de regras nasceu no seio de uma família de militares...

Não venha com as perguntas feitas de casa. O meu avô materno era capitão-de-mar-guerra, engenheiro maquinista, e o meu avô paterno, coronel da artilharia, dirigiu o Arquivo histórico-militar. Eram militares, mas pareciam ser outras pessoas. Tinham boa cara. O pai do meu pai, aquando da primeira incursão monárquica, comandada pelo Paiva Couceiro, foi a Chaves dar umas bombadas nos canhões e teve de fugir. O meu pai estava a tirar o curso na Faculdade de Letras para ser diplomata, mas como aconteceu a Primeira Grande Guerra, a diplomacia foi para o galheiro. Não acabou o curso. Nem eu.

Por razões diferentes?

Sim. Os professores na Faculdade de Letras eram uns chatos. Excepto o Vitorino Nemésio (que me deu 18 valores) e o Delfim Santos. Nunca engraxei o Nemésio, eu não era igual ao Urbano e ao David. Mas espere aí, deixe-me falar do ano que antecedeu a faculdade. Em 1943, quando acabei o liceu, o meu pai disse que não tinha dinheiro para eu estudar na Faculdade. Falou com o professor João de Brito, que me deixou assistir às aulas. Eu era um aluno fantasma. Não me perguntavam nada, o que era maravilhoso. Nos intervalos ia para a biblioteca. Devorei Gil Vicente, Garcia de Resende, Fernão Lopes e outros. Por essa altura comecei a dar explicações. Portanto, aprendia e ensinava. Foi um ano em cheio! No final, fiquei muitíssimo bem classificado no exame de admissão à Faculdade de Letras de Lisboa, no Curso de Filologia Romântica, e consegui ficar isento das propinas.

Saiu da faculdade e, em 1946, foi admitido como agente fiscal da Inspecção de Espectáculos.

Aquilo era uma treta. Não inspeccionávamos nada.

Quando é que funda a editora Contraponto?

A editora começou a funcionar em 1951, logo depois do primeiro número da revista. Nasceu no ensaio de uma terceira via e só tinha um critério: os gajos do Estado Novo não podiam entrar. Vivia um bocado à mercê do facto de eu e o Jaime Salazar sermos amigos. Quando foi publicado o ‘Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano’, de Mário Cesariny, o Jaime ficou f. Pensava que a editora era só para ele. Mais tarde, o mesmo aconteceu com Cesariny, quando Herberto apareceu. Razão tinha o Gaspar Simões em chamar- -me ‘O sacristão do Surrealismo’, por publicar aquela gajada. Não faz muito tempo, vendi a editora à irmã do Manuel Alegre por um preço de m..

Era amigo de Cesariny?

Essa pergunta traz água no bico. Dizem que nós éramos amantes. Um disparate. O gajo não fazia o meu género. Eu nunca tive a mania de Paris. Ele tinha.

A sua colaboração nos jornais começou no ‘O Globo’, em 1945, e ainda há dez anos escrevia na imprensa

O Nicolau Santos, que na altura era director do jornal ‘O Público’, convidou-me para escrever uma crónica. Os gajos até pagavam bem. Mas tiveram o azar de anunciar Luiz Pacheco escritor polemista. Dava-lhes jeito que eu desse porrada. Mas durante meses não lhes fiz a vontade. Podem contar comigo para dar porrada, mas jamais por incumbência.

É verdade que, uma vez, enquanto traduzia um livro, esteve quase para ser publicado um palavrão?

Publicado não digo, mas aquilo fez-me correr. Eu estava a traduzir um livro para crianças e havia uma palavra cujo significado em Português eu não encontrava. Para não me esquecer escrevi a vermelho c. Quando me lembrei... falei à editora, que me disse que o livro já estava nas mãos do revisor. Corri para a casa do gajo. E lá estava o c. marcado a vermelho, mas fui a tempo. O c. foi substituído por penacho.

É autor de muitos livros, mas nunca escreveu romances.

Porque é preciso ter disciplina. Mas não é como escritor que posso ser importante. Se me perguntarem da minha importância é como editor. Editei muitos livros que eram muito baratos. Tinha bons autores, Raul Leal, Natália Correia, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, Vergílio Ferreira, Mário Cesariny. Jamais editaria, por exemplo, o Fernando Namora. Ele era um aldrabão. Ou o José Agualusa, que não escreve nada. É um pateta alegre.


O que é preciso para escrever bem?

Ler muita coisa. Estar atento. E há gajos que escrevem sem nunca terem lido uma frase.

Gosta da escrita de António Lobo Antunes?

Muito. Gosto quando ele fala do bairro onde nasceu, Benfica. Tem muitas qualidades e anos de escrita. Mas é um bocado apanhado da pinha. Também tem a maluqueira de dizer que não consegue viver sem escrever. E tem razão. Ele é o escritor mais internacional de Portugal.

E José Saramago?

Também, embora de maneira diferente. Mereceu o Nobel. Saramago e o Lobo Antunes têm uma coisa em comum: são escritores que já só escrevem para o estrangeiro.

O que nos diz dos políticos?

São uns m. Comparados com eles próprios. Aquela que foi ministra das Finanças era uma tipa séria, mas era cá um camafeu.

Gosta do José Sócrates?

Quem é? Não o conheço.

Mas gosta de Pedro Santana Lopes?

É um ‘bom vivan’. Não deixou obra nenhuma, mas sabe viver. Andava nas discotecas e estes gajos – o pequeno, o gajo que é quase anão – fez-lhe a folha. O Santana é um senhor. Gosta das noites. E bebe o seu copinho. Eu deixei de beber há uma semana. Ao almoço bebia vinho – tinto, pois está claro. Quando se fala em vinho fala-se em tinto.

João Soares, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa, fez-lhe uma visita e trouxe-lhe umas garrafas de tinto.

E que belo tintol! Apareceu no Natal, com um funcionário. Trouxe-me vinho, um belo presunto e livros. Vinha com a ideia maluca de eu fazer um artigo sobre o governador do Costa do Castelo.

O País reconhece as pessoas?

Não podemos falar de um só País. De Lisboa ao Porto existem dois países ou, talvez, existam quatro países em Portugal. Por exemplo, o Mário Soares, quando era Presidente da República, deu-me 650 contos. Uma vez, no Chiado pedi-lhe 20 paus emprestados. E ele deu-mos. Este presidente, o actual, que tem aquela cara, não me deu nada.

Vive de alguma pensão?

Tenho um subsídio de 120 contos, graças ao Alçada Batista. E também ao Balsemão, que teve a feliz ideia de inventar o decreto do mérito cultural. O Santana despachou um decreto que favorece pessoas que estão na minha situação. Mas não é por isso que gosto do rapaz. O tipo sabe o que é bom. O que é bom para mim são umas garotas, que vêm cá de manhã para me fazerem a higiene. Não é mau.

QUESTIONÁRIO

Um País... Montijo

Uma pessoa... D. Afonso Henriques

Um livro... ‘Gustavo, o Estroina’, de Paulo Koque

Uma música... ‘Variações’ de Golberg

Um lema... Não me lixem. Não me chatem

Um clube... Clube Jardinense, o clube do Montijo

(Entrevistado por)Miriam Assor

terça-feira, abril 15, 2008

a Fa(r)da do lar


A verdadeira e única história das três FADAS!!
Certo dia, a professora pediu a toda a turma para inventar uma história. Depois de todos os colegas lerem a sua composição, chega a vez do Carlinhos, que começa assim:

- "Vou contar a história das três fadas:
Era uma vez uma prinsusa..."
Nisto a professora interrompe e diz:
"É princesa que se diz e não prinsusa!"
- "Não Sra professora, nesta história é mesmo prinsusa."
E continua:
- "Era uma vez uma prinsusa, que vivia suzinha na turre do seu castalho e estava traste, muito traste por estar suzinha. Resolve então enviar um bilhuto a um prinsusu que também vivia suzinho na turre do seu castalho.

Escreveu muitos bilhutos até que um dia o prinsusu agarrou no seu cavalo e cavinhou, cavinhou, cavinhou pela florista até chegar ao castalho da prinsusa.

Quando chegou à purta do castalho da prinsusa dá-lhe um pintapu e a purta cai.
Sobe a correr até à turre da prinsusa, arrebenta com a purta do quarto da prinsusa, ele olha para ela..., ela olha para ele..., ele olha para ela e....

Dá-lhe três fadas!!!"

quinta-feira, abril 10, 2008

Os passos do Dragão...Luis Freitas Lobo







1978-2008: Os passos do Dragão Por Luís Freitas Lobo
A "revolução azul" ao longo de três décadas. A ideologia "pedrotiana". 30 anos como fossem a mesma época, o mesmo código genético. Como Duda, Oliveira ou Gomes jogassem no mesmo onze de Lucho, Lisandro ou Quaresma.
A bola, chutada por Ademir, saiu meia enrolada, mas parecia levar vida própria, conduzida por milhares de adeptos que a tentavam convencer para, ao chegar junto à baliza, fazer um pequeno desvio para as redes. Na baliza do Benfica, Fidalgo, que substituía o elástico Bento, tentou esticar-se mas o lado hipnótico enganou a bola e ela entrou mesmo. Um simples lance que terá mudado o curso da história do futebol português. Um golo decisivo que reconquistou para as Antas um título que fugia há 19 anos e marcou o início de uma nova era na correlação de forças nos relvados lusos. Já passaram trinta anos desde essa tarde histórica. Não é, no entanto, um mundo assim tão distante. Entre 1978 e 2008 existe um elo de ligação poderoso que faz a força, corpo e alma do FC Porto "produto regional", insubmisso ao poder central. Num ápice, o onze azul-e-branco deixou de jogar como quem moía um sentimento, para, de sobrolho carregado, erguer um exército futebolístico que no fervor revolucionário de meados dos anos 70 encontrou o habitat perfeito para colocar uma bola no centro do confronto com os velhos poderes macrocéfalos da capital. A "revolução azul" prolonga-se há três décadas. Todos os movimentos históricos são feitos por acção ou por reacção. O FC Porto foi, claramente, um movimento de reacção. Longe das sofisticações do Gambrinus ou do Maximes, mas cliente das opíparas tertúlias quase clandestinas do Orfeu e da Petúlia, hoje extintas mas cujo legado permanece ao ponto dos traços ideológicos do título do FC Porto 2007/08 serem, na essência, os mesmos de 77/78. É este o segredo do FC Porto e de qualquer clube para manter-se no topo durante décadas: decifrar o seu ADN.
Na génese, um homem, mestre em vários campos. Na arte da táctica e na arte do conflito, um estudioso do comportamento humano. José Maria Pedroto. Os traços do Porto "pedrotiano", o Porto da "inteligência e da esperteza", continuam vivos, das Antas para o Dragão, na mente e nos actos. Um forma de viver que se transformou numa forma de jogar. De Duda, Gomes e Ademir, até Lisandro, Lucho e Bruno Alves, passando por João Pinto, Baía e Jorge Costa. Parece que jogaram todos na mesma equipa. Como aqueles trinta anos fossem sempre a mesma época. O rosto mais "humano" do presente é apenas um "upgrade" estratégico, como a descoberta, em meados dos anos 80, do bicho mitológico no topo do emblema. Era o nascer do Dragão símbolo azul. Mesmo depois das grandes conquistas internacionais, a ideologia permanece intacta. Jesualdo gosta de definir as exibições da equipa como "sérias" e "inteligentes". Serão esses os melhores adjectivos, de facto, para definir o futebol portista a longo de três décadas, mas nesses percurso, também existiram os mágicos. Oliveira, Madjer, Futre, Deco, Quaresma. Toques ilusionistas suportes da visão táctica, como quando, no jogo de 78, Pedroto, a perder, tirou dois defesas (Freitas e Gabriel) e meteu dois avançado (Vital e Seninho) passando a jogar com três defesas. Hoje, os traços tácticos e técnicos têm sotaque argentino, os passos e os passes ritmados de Lucho, os remates guerreiros de Lisandro, e as diabruras de "gipsy king" Quaresma. Ao longo de três décadas, nenhum outro clube entendeu tão bem as diferentes faces da táctica futebolística dentro e fora do campo, quase como se fosse uma extensão desportiva da frase imortal de D. João II: "tempos há para usar de coruja e outros há para usar de Falcão". É a história e uma bola de futebol.
A marca de Jesualdo Dois campeonatos, o "Dragão de Ouro", a postura esfíngica no banco, o discurso destemido nas conferências. A marca do reciclado Jesualdo. Chegou no Verão de 2006 com a pré-época já terminada. Encontrou uma equipa feita mas com ideias diferentes. Reequilibrou-a tacticamente à sua imagem (do aventureiro 3x3x4 de Adriaanse para o equilíbrio racional do 4x3x3) e cavou um abismo para outros grandes. Na segunda época mais do que na primeira. Dois títulos sem sombra de pecado. Para o terceiro ano, o desafio da dimensão internacional. É o que falta para deixar uma assinatura própria incontornável no "casa do Dragão" onde muitos treinadores acabam com o tempo diluídos pelos méritos da "máquina azul". Onde, dizem, "qualquer um ganha". As exigências europeias são, porém, maiores. Saber defender mais à frente (memória de Pepe) e mais posse e controlo a meio-campo (saber jogar em 4x4x2). Mais qualidade individual para dar maior poder colectivo. No terceiro ano de Jesualdo, o supremo desafio europeu.
O jogador símbolo Em todas equipas existem os chamados jogadores-símbolo. Quase como alter-egos do colectivo. Lucho, na táctica, Lisandro, nos golos, Quaresma, na magia, serão três símbolos deste FC Porto altivo, mas nenhum deles nasceu na era-Jesualdo onde nunca surgiram reforços de primeira página. Por isso, teve de inventar, nas caves do laboratório interno, o seu jogador-simbolo. Aquele que possa ser apontado como obra do professor. Uma obra futebolistica com nome e duas pernas: Bruno Alves. Antes de Jesualdo, um jogador preso a uma imagem de excessiva dureza, suplente cativo, pouco utilizado e olhado com desconfiança. Depois de Jesualdo, um jogador de personalidade, chefe que manda e assusta, titular indiscutível, sucessor da herança dos centrais portistas que só de olhar intimidam avançados. Existem muito tipo de jogadores para elogiar na hora da vitória. Nessa altura, sinceramente, tenho tendência a elogiar aqueles com os quais iria a qualquer lado. Bruno Alves é esse jogador-simbolo, uma paixão antiga de Jesualdo.