segunda-feira, abril 07, 2008

Entrevista da Inocencia Mata ao Novo Jornal /4 de Abril 2008



Entrevista Inocência Mata

Viver a literatura com os olhos cheios de África

"Conhecer muitos mundos não significa apanhar o avião
e viajar dez horas, significa ler muito."



Nasceu em São Tomé e
Príncipe, fez os estudos
secundários em Angola
e vive em Portugal
desde o início dos anos
80. Doutorada em
Letras pela
Universidade de Lisboa
na área das Literaturas
Africanas de Língua
Portuguesa e autora de
várias obras aclamadas
pela comunidade
académica
internacional,
Inocência Mata é
actualmente um dos
nomes de referência na
área dos estudos
literários e culturais
lusófonos.



Entrevista de BRUNA PEREIRA Fotos de BRUNO BARATA



Sobre o que de melhor se escreve em Angola e quais as principais barreiras que impedem a
cultura angolana de chegar ao resto do mundo, esta ensaísta considera que o país
experimenta um período de grande diversidade e maturidade na escrita. No entanto, além-
fronteiras, Angola continua a ter "uma literatura periférica que se inscreve numa língua
periférica que é o português".







Quando é que se pode falar efectivamente do início de uma literatura angolana?

A literatura angolana, enquanto sistema, ou seja, enquanto representação do imaginário
geocul-tural de Angola, existe a partir de meados do século XIX, há aproximadamente 150
anos. Esta é uma ideia consensual mas não é uma ideia unânime, porque há quem julgue
que a literatura angolana tem os seus inícios no século XVII. Considerar que a literatura
angolana vem do século XVII é, quanto a mim, um equívoco, pois julgo que a literatura
angolana, enquanto sistema, apenas se estrutorou a partir de meados do século XIX, quando
se foi configurando uma comunidade imaginada marcada territorialmente. Somente a partir
de 1850 é que se começou a escrever em direcção a uma convergência temática e com uma
regularidade na escrita. Pode dizer-se que o marco dessa regularidade e dessa convergência
em Angola é José da Silva Maia Ferreira, autor do livro "Espontaneidades da minha alma -
Às senhoras africanas!.

Que fase atravessa actualmente a identidade da literatura angolana?

Durante o tempo colonial des-cortinavam-se basicamente duas modalidades de escrita: uma
que escrevia a "nação angolana" e outra que escrevia a "portugali-dade" e a ideia de que
Portugal ia do Minho a Timor, passando por Angola. Essa literatura colonial fazia a
apologia do colonialismo e de Angola como uma região de Portugal. A outra literatura era a
que dizia que Angola não era uma região de Portugal, mas sim uma nação, no sentido
simbólico do termo e no sentido de uma comunidade imaginada.Actualmente, estamos
numa fase não de consolidação, porque a literatura angolana, enquanto sistema, está
completamente consolidada, mas numa fase de grande produtividade divergente. Assiste-se
hoje, em Angola, a uma multiplicidade de géneros, de formas de escrever, de temáticas, de
preocupações e de construções simbólicas, o que demonstra a maturidade da literatura. Hoje
em dia cada escritor é uma corrente e são inclusivamente vários os escritores que se
debruçam sobre a temática do pós-guerra, sendo que o primeiro romance nitidamente sobre
o pós-guerra é "0 manequim e o piano", de Manuel Rui. Há ainda um outro escritor, João
Tala, que tem vindo a escrever contos sobre esse mesmo tema do pós-guerra angolano, a
partir de 2002. Podemos ainda citar "Predadores", de Pepete-la, que é um romance que
assenta num grande flash-back até ao tempo colonial, mas cuja acção nuclear se centra no
pós-2002.



PEPETELA, LUANDINO, BOAVENTURA CARDOS

Possui a literatura angolana características próprias que a distingam das suas
congéneres lusófonas africanas? Reivindicar a diferença na literatura angolana é hoje uma
questão ultrapassada, já que o escritor não precisa de continuar a gritar que é diferente,
porque ele já é diferente pela constituição política e ideológica e pela própria marcha da
história. A literatura angolana poderá distinguir-se da literatura moçambicana, por exemplo,
pelas preocupações evidentes na enunciação, pela linguagem política, pelos espaços (não
apenas os espaço físicos), pela geografia e pela forma como se perspectiva a relação entre
os vários agentes sociais em Angola. A diferença da literatura angolana é uma diferença
inata, em termos de horizontes e em termos de expectativas. Por exemplo, o último livro de
Pepetela que eu li, "0 terrorista de Berkeley, Califórnia", é um livro cuja cena se passa nos
EUA, um espaço que não é de todo angolano, mas qualquer pessoa que lê aquele livro diz
com toda a certeza que se trata de um livro escrito por um angolano, por causa da
linguagem, por causa da ironia tão caracteristicamente luanden-se e por causa da sua
ambiência linguística.




Quem são os maiores embaixadores da literatura angolana?

Pepetela é um embaixador da literatura angolana, por causa da sua qualidade e por causa da
representatividade da sua obra, que percorre vários nichos temáticos e várias segmentações
ideológicas e históricas. Luandino Vieira é também um embaixador, apesar de ser um
escritor que passou 30 anos sem escrever nada de novo, entre muitos outros. Boaventura
Cardoso deveria ser mais publicitado do que é, mas isso é outra história. Por variadas razões
há ainda outros que não são conhecidos - quando eu trabalho alguns escritores nas minhas
aulas, por exemplo, tenho de recorrer a fotocópias, porque não há outra forma de ter acesso
a esses autores.

Qual é então o grande desafio que a literatura angolana enfrenta para sair deste
impasse? Ou será que não depende tanto de Angola?

Sim, depende de Angola também. Primeiro, porque as barreiras alfandegárias e as taxas
sobre as matérias-primas são um empecilho, e depois porque, por causa disso, os livros em
Angola são caríssimos. Para além da pura especulação sobre todos os produtos: tudo é
caríssimo. Os livros são a minha matéria-prima mas se eu chego a Angola e se houver cinco
livros novos, não posso, literalmente, comprá-los porque não tenho dinheiro. Porque,
malgré tout, não vivo só de livros, vivo de outras coisas que precisam de ser
compradas.Claro que Angola é responsável por isto, porque tem de haver uma política
cultural que considere esses bens materiais quase como bens de primeira necessidade. Neste
aspecto, Angola tem a sua parte de responsabilidade. A não circulação de bens culturais nos
países de língua portuguesa faz com que os livros publicados em Portugal não cheguem a
Angola por causa dessas barreiras. Há igualmente belíssimos escritores como João
Maimona, José Luís Mendonça ou Adriano Botelho de Vasconcelos que não são
conhecidos em Portugal porque publicam as suas obras no país de origem. Se não forem
eles a oferecer os seus livros, ninguém os pode comprar, pois eles não chegam a parte ne-
nhuma. Por exemplo, não estão disponíveis no Amazon...

Sobre os novos talentos angolanos, como por exemplo Ondjaki. Há, de facto, uma
nova geração de escritores angolanos que começa a ser reconhecida?

Há uma nova geração de escritores que aparece com novas ideias e com sangue novo. Há,
porém, um handicap nesses escritores: lêem pouco e alguns são um pouco convencidos. E
se há uma coisa que eu aprendi ao conversar com velhos é que nós temos que ser humildes
em tudo o que fazemos. E quando digo humildade, não digo humildade perante o outro,
digo humildade perante aquilo que nós próprios fazemos, no caso, que eles próprios escre-
veram. Os escritores mais novos escrevem hoje e já querem publicar amanhã e eu penso
que isso é falta de humildade. 0 problema de muitos desses jovens é que não são humildes.
Têm potencial mas não possuem ainda o domínio da técnica. E isso ganha-se não apenas
com génio, mas com prática, com leitura, muita leitura e com experimentação. Há um livro
que eu aconselho aos jovens que querem ser escritores, que é um livro de um escritor
romântico do século XIX, Percy Bysshe Shelley, intitulado "Defesa da poesia". É um livro
de fácil compreensão para os jovens que querem ser escritores perceberem que, se querem
ser alguém, tém de ver para além daquilo que nós vemos e têm de conhecer muitos mundos,
e conhecer muitos mundos não significa apanhar o avião e viajar dez horas, significa ler
muito. Para se ser escritor também é preciso ter génio, porque como eu costumo dizer aos
meus alunos, se as leituras bastassem, os professores de literatura seriam todos escritores.
Não basta só ler. Mas a leitura é fundamental para a construção de um escritor.






INSTRUMENTO DA LUTA DE LIBERTAÇÃO

São vários os escritores angolanos que foram simultaneamente grandes intervenientes
no processo de reconstrução e desenvolvimento político, histórico e social do país. A
literatura angolana é uma ferramenta poderosa que extravasa o campo puramente
literário?

A literatura angolana foi fundamental para a libertação do país. Angola não se libertou ape-
nas com recurso à Kalashnikov. 0 país libertou-se também através do processo de
consciencialização e da construção da ideia de "nação angolana". Não é por acaso que
quando se dá o 25 de Abril de 1974 muitos poemas foram musicados. Esses poemas diziam
ao povo aquilo que possivelmente as palavras dos políticos não eram capazes de dizer. Uma
pessoa lê ou ouve um poema como o "Monangamba" (António Jacinto), ouve um poema
como o "Adeus à hora da largada" (Agostinho Neto) e sente que para além das palavras há
um universo, uma nação, uma comunidade. A literatura foi um instrumento subsidiário da
luta, da guerrilha, e ajudou na libertação e na reconstrução do país. A literatura angolana
antecipou inclusivamente algumas reflexões científicas e muitas das questões que hoje as
ciências sociais estão a abordar, como a questão da corrupção, do neoliberatlismo, do
capitalismo selvagem, do racismo e das diferenças étnicas e de classe. A literatura angolana
aborda algumas destas questões desde os anos 80, o que é extraordinário e deve ser dos
poucos países onde isto acontece.

Essa função da literatura não acontece apenas em períodos conturbados? É uma
função continuada?

Sim, é uma função contínua que é capaz de acontecer mais em países como Angola, em que
as instituições do saber, como as universidades, não estavam ainda consolidadas. Não sei se
é algo que vá voltar a acontecer mas o que é certo é que aconteceu. Em todos os países que
emergem de uma guerra há assuntos tabu e o 27 de Maio, em Angola, era um assunto tabu.
Hoje toda a gente fala do assunto. Ora o primeiro livro que trouxe para a cena literária a
questão do 27 de Maio, e interessantemente sem nunca nomear o 27 de Maio, foi
Boaventura Cardoso, com o livro "Maio, mês de Maria", uma obra que recorda todo esse
período de medo que se seguiu ao 27 de Maio. Seguiram-se, na poesia, Adriano Botelho de
Vaconcelos e Bonavena. Este é apenas um exemplo de como a literatura em Angola é ex-
traordinariamente multifacetada, "doce" e "útil", como deve ser toda a literatura.

Que autores angolanos é que lecciona em Portugal?

Pepetela, Luandino Vieira, Paula Tavares, Manuel Rui, Ruy Duarte de Carvalho,
Boaventura Cardoso, João Maimona, Adriano Botelho de Vasconcelos, José Luís
Mendonça, João Melo e tantos outros. Eu gosto de mudar o programa todos os anos.

“Agualusa é um perfeito ignorante sobre o que é a literatura"

Em entrevista a um órgão de comunicação angolano, José Eduardo Agualusa afirmou
que "a poesia de Agostinho Neto é medíocre" e que "uma pessoa que ache que
Agostinho Neto foi um extraordinário Poeta é porque não conhece rigorosamente
nada de poesia... o mesmo se podendo dizer de António Cardoso ou de Amónio
Jacinto". Que comentário lhe merecem estas afirmações?

Quem afirma que "uma pessoa que ache que Agostinho Neto foi um extraordinário Poeta é
porque não conhece rigorosamente nada de poesia... o mesmo se podendo dizer de António
Cardoso ou de António Jacinto", é um perfeito ignorante sobre o que é a literatura. Deve
achar que pode falar sobre tudo e que sabe de tudo. Na realidade, deveria era ler um pouco
mais para além de informação.