segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Joaquim Pinto de Andrade morreu há um ano!


Depoimento de Mário Brochado Coelho

Em 23 de Fevereiro de 2008, morreram dois angolanos que importa não esquecer: Joaquim Pinto de Andrade e Gentil Viana. Sobre o primeiro, divulgamos hoje um texto de Mário Brochado Coelho, escrito por ocasião de uma homenagem que teve lugar em Angola, e referimos outros dois publicados há um ano. Incluímos também uma referência a dados biográficos de Gentil Viana.


O homem que, hoje e aqui, se homenageia é tanto um filho da sua querida Angola como um cidadão do mundo.

É um lutador infatigável em defesa da independência do seu povo mas sem nunca deixar de ser um espírito aberto, culto, tolerante e amante da paz.

Trata-se não apenas de um intelectual vindo directamente do seio do seu povo mas também de um cidadão ferreamente coerente em todos os aspectos da sua intensa vida pessoal e cívica.

Sendo nacionalista nunca aceitou remeter-se aos limites estritos do nacionalismo.

Sendo angolano nunca perdeu a noção dos enquadramentos africano e mundial.

Sendo um combatente nunca deixou de propugnar as vias do entendimento e da paz.

Sendo filho de uma terra com abundantes riquezas nunca deixou de preferir os valores morais, a história e a humanidade das suas valorosas gentes.

Que a memória dos angolanos e dos amantes da liberdade nunca se esqueça deste exemplo vivo de homem justo, porque ela é um património inestimável para toda a Angola.

Os princípios norteadores da actuação de Joaquim Pinto de Andrade integram, portanto, o “renascer africano”, agora e em boa hora, promovido pela Associação Cívica de Angola e pela Associação Chá de Caxinde.

Na impossibilidade de estar presente e de poder partilhar directa e pessoalmente esta homenagem (a quem tenho, aliás, como sendo um verdadeiro irmão), gostaria de, por este meio, recordar especialmente aos mais novos alguns factos que urge, em meu entender, não esquecer sobretudo nestes dias que o povo angolano vive.

Através deles, todos poderão avaliar a envergadura de quem estamos a homenagear.

1. É bom que se recorde que a luta de Joaquim Pinto de Andrade se iniciou logo em 1950, em Lisboa (em carta dirigida em 3.5.1976 ao dr. Agostinho Neto descreveu o seguinte:
“Foi no Verão de 1950 que travámos conhecimento, em Lisboa. Éramos ambos jovens. Éramos ambos estudantes. Éramos ambos ardorosos patriotas. Com meu irmão Mário, com Amílcar Cabral, com Alda do Espírito santo, com tantos outros estudantes das colónias portuguesas, sonhámos e planeamos o futuro das nossas pátrias africanas“).

2. Com o seu regresso de Roma em 1953, ou seja há 50 anos, quando ainda não fora criado qualquer dos históricos movimentos de libertação de Angola, iniciou em solo pátrio todas as iniciativas possíveis para o necessário combate pela dignidade dos angolanos.
Desde então passou a ser vítima de uma feroz e destruidora perseguição de índole racista e colonialista que passou pelos seguintes episódios principais:
- envolvimento no chamado “processo dos 50″,
- prisão em 25.7.1960,
- exílio e prisão no Aljube de Lisboa em 4.7.1960,
- envio num navio de carga para a Ilha do Príncipe,
- regresso ao Aljube de Lisboa em 1961,
- residência fixa e clausura no Mosteiro de Singeverga,
- nova prisão na PIDE da cidade do Porto e posterior transferência para a tristemente famosa “cela dos curros” do Aljube de Lisboa,
- “libertação” em 5.1.1963 e nova prisão imediata na cadeia de Caxias,
- colocação em residência fixa no interior do Alentejo após 389 dias de prisão ininterrupta sem culpa formada,
- nova prisão (a quinta) em 24.1.1964,
- colocação em residência fixa num seminário de Vila Nova de Gaia,
- sétima prisão em 1970,
-condenação a 3 anos de cadeia e 15 anos de suspensão de direitos políticos sob a acusação de ser membro de uma conspiração promovida pelo MPLA em Lisboa.

3. Cumprida a pena no Forte de Peniche e com o 25 de Abril de 1974 em Portugal, logo Joaquim Pinto de Andrade procurou, sem demora ou hesitação, contribuir para a unidade dos angolanos na tarefa do reconhecimento da desejada independência de Angola.
Partiu para Adis Abeba, depois Brazzaville, compareceu em Lusaka, e, finalmente, pôde regressar à sua pátria.
Tinham decorrido 14 anos de exílios e prisões.

4. Gostaria que, por pertinente, hoje fosse recordada a seguinte parte de um apelo que lançou através da Rádio Brazzaville em 9 de Julho de 1974:
“São objectivamente nacionais angolanos todos aqueles que lutam efectivamente contra a dominação colonial para a construção da Pátria independente. Nesta hora difícil mas exaltante, todos os nacionais, independentemente do local de nascimento, da sua origem racial ou étnica, da nacionalidade dos seus antepassados, da sua ideologia ou religião, têm de lutar pela libertação imediata e completa da Pátria comum e pela construção duma Angola independente e democrática“.

5. Mais tarde (Maio de 1976), após a sua oitava prisão - desta vez no seu próprio país e determinada pelo próprio Estado da Angola já independente - Joaquim Pinto de Andrade escreveu uma carta ao dr. Agostinho Neto, então Presidente da República.
Dela retiro a seguinte parte que gostaria de partilhar hoje convosco:
“Quero apenas realçar de novo a minha viva preocupação pelo que está acontecendo neste País (particularmente em Luanda) e pelo que pode vir a acontecer. Semeia-se o ódio, fomenta-se a discórdia, propala-se a calúnia, incita-se à violência gratuita. Assiste-se a cada passo a cenas e atitudes de racismo. Vive-se num ambiente de desconfiança, inquietação e insegurança. Aumentam as prisões por motivos políticos.
Neste clima de paixão, habilmente fomentado e aproveitado por toda a casta de oportunistas, podem cometer-se as maiores iniquidades, os maiores atropelos à justiça e à dignidade humana. Está em causa a vida, a liberdade e a dignidade humana de cidadãos angolanos. Está em jogo a honra e o prestígio da nossa jovem República e do nosso Povo. É urgente e imperioso que se tomem medidas para sanear o ambiente por demais inquinado pelo vírus do ódio, da vingança e da calúnia. É necessário que se faça justiça num clima de serenidade. É imperioso unir a Nação e não dividi-la”.

6. Anos depois (1992) quando lhe foi atribuído o Prémio Internacional da Paz pela Pax Christi (de que foi vice-presidente), afirmou no seu discurso de Belém:
“Urge exercer uma libertadora pressão moral sobre os responsáveis dos destinos do país, para que sejam exorcizados de uma vez por todas os demónios da violência, da destruição, da guerra. A paz é uma tarefa e uma arte de viver delicada e persistente, paciente e generosa, um jogo em permanente equilíbrio instável. Ela constrói-se no dia a dia da luta constante das mulheres e dos homens por mais verdade, mais justiça, mais amor, mais liberdade. Não resulta da violência dos senhores da guerra nem é consequência apenas da habilidade e esforço dos negociadores. O conceito bíblico de ’shalom’ (paz) vai além da mera e limitada segurança política, para incluir a realização plena da pessoa - matéria e espírito - na sua dimensão individual, familiar e social, sem esquecer a integridade da criação. Estas breves reflexões levam-nos a concluir que a instauração e preservação da paz só será possível se for garantida a democracia, o que significa defesa intransigente dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, respeito pelo indivíduo e pelas minorias (sejam elas étnicas ou religiosas, culturais ou linguísticas), aceitação da diferença e preservação do pluralismo, convivência na tolerância e na solidariedade, adopção da concertação e do diálogo como métodos para a solução dos conflitos.“

Com a imensa actualidade destas palavras do nosso homenageado - que eu tomei a liberdade de escolher - podemos verificar que estamos perante uma dessas raras personalidades que apresentam os seus gestos, as suas palavras, as suas acções, os seus muitos anos de militância, como uma demonstração inequívoca e contínua das suas intenções, da sua mensagem pessoal, da sua vida.
Como ele, África teve Luthuli, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, seu irmão Mário Pinto de Andrade, Nelson Mandela e não muitos mais.

Que o nosso carinho e respeito nesta homenagem de amigos seja para Joaquim Pinto de Andrade a certeza de que a sua vida valeu a pena.

Uma palavra final de reconhecimento para a família deste lutador e em especial para sua mulher, dra. Vitória Almeida e Sousa. Justo é recordar que todos estiveram e estão à sua altura, quer no isolamento, quer no sofrimento, quer nas imensas dificuldades do dia dia, quer nos momentos infelizes em que alguns chegaram a tentar manchar a sua honra com calúnias de vário tipo, quer também nas ocasiões de felicidade e justiça como esta que aqui vos reune.

Para ti, Joaquim, só te posso desejar que tenhas teimosia e saúde suficientes para poderes sentir e fruir a tão esperada concretização da grande esperança que enche a Angola actual.

Faz hoje um ano que faleceu Gentil Viana


Um texto de Adolfo Maria

Morreu mais um valoroso angolano: GENTIL VIANA


Para que gente valorosa que marcou uma época de inúmeras lutas
pela liberdade no Mundo não caia no olvido das gerações
que usufruem o fruto desses sacrifícios;
para que os angolanos aprendam a conhecer a sua história
e as injustiças praticadas pelos que ascenderam ao poder,
traço aqui uma breve biografia de Gentil Viana.
É um preito de homenagem, é um acto de justiça.
Para que conste.



Nascido na capital de Angola, em Novembro de 1935, Gentil Ferreira Viana começou jovem, ainda no liceu de Luanda, a lutar pela identidade angolana nos moldes que eram possíveis naqueles tempos em que o fascismo português exercia feroz repressão política em Portugal e nas suas colónias. Seguia as pisadas do seu pai, Gervásio Viana, um dos fundadores da Liga Nacional Africana.

Em 1954 foi para Portugal fazer os seus estudos universitários (em Angola não havia então universidade), onde viria a concluir o curso de direito. Como estudante universitário participou em várias acções políticas em prol do nacionalismo angolano. Possuidor de uma inteligência invulgar e de grande capacidade de análise propôs rupturas com a maneira como os vários estudantes e intelectuais “mais velhos” das colónias portuguesas entre os quais Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara faziam política na metrópole colonial. Gentil Viana defendia a posição de que os nacionalistas das colónias portuguesas não deviam participar intimamente na luta política portuguesa mas, sim, organizar-se de modo autónomo para a luta anti-colonial e para o reforço do movimento nacionalista em cada uma das colónias portuguesas. Pondo em prática as suas ideias, Viana traçou um programa para que estudantes de consciência nacionalista tomassem a direcção da Casa dos Estudantes do Império, uma associação que albergava, no geral, elementos de uma minoria privilegiada e que o governo fascista pretendia que fosse apolítica. A partir de 1958 a “Casa” passou a ser dirigida por elementos nacionalistas de todas as cores da pele, predominando os mestiços e negros, e desenvolveu intensa actividade associativa e cultural, incluindo editorial. Assim foram editados escritos de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto, Mário de Andrade, Craveirinha, Noémia de Sousa, entre outros.

Tendo eclodido a luta armada em Angola em 1961, alguns estudantes angolanos organizam e realizam uma fuga maciça clandestina a partir das cidades universitárias portuguesas de Coimbra, Porto e Lisboa para reforçarem os movimentos nacionalistas,
sobretudo o MPLA. Conseguindo iludir a omnipresente polícia política salazarista, cerca de cem pessoas chegam a França em meados de 1961. Daqui partiram para vários países. Gentil Viana, um dos mentores desta fuga, é enviado para Conakry, onde o presidente guineense, Sekou Touré, albergava o Comité Director do MPLA, dirigido por Mário Pinto de Andrade. Este fez-se acompanhar por Viana, ao tempo com 26 anos, na intensa actividade diplomática junto da ONU e de vários países para a condenação do regime colonial português e o reconhecimento internacional da causa nacionalista angolana.

Entretanto, em 1962, avolumavam-se as dificuldades para o MPLA no Congo, governado por Adoula, depois da eliminação física de Patrice Lumumba, o primeiro chefe do governo congolês, que fora eleito através das eleições que antecederam a independência desse país. A UPA (mais tarde FNLA), enquanto perseguia os militantes do MPLA, impedindo-os de entrarem em Angola, mobilizava as populações angolanas refugiadas no Congo, fugidas da repressão colonial. Na sua propaganda utilizava o racismo acusando o MPLA de ser um movimento de «mulatos» e de não fazer a guerra. Esta actividade da FNLA tinha a aprovação e protecção do governo de Adoula e dos Estados Unidos da América que dominavam o governo congolês. Também, no seio do MPLA, havia fortes fricções resultantes desta conjuntura externa e da animosidade crescente entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto, que conseguira fugir clandestinamente de Portugal em Maio de 1962 e a quem seria entregue a presidência do MPLA, numa estratégia delineada para combater a influência da UPA.

Em Dezembro de 1962, o MPLA realizou uma conferência nacional em Leopoldville (actual Kinshasa) tendo como objectivos principais a discussão dos problemas da luta e do movimento e oficializar a entrega da presidência que Mário de Andrade já fizera simbolicamente a Agostinho Neto. Nessa conferência dois elementos, o secretário geral do MPLA, Viriato da Cruz, e um militante, Gentil Viana, monopolizaram o debate num tremendo confronto de ideias e estratégias. Viana, que sempre admirou Viriato, combateu com veemência a estratégia do secretário geral e apresentou um plano estratégico a que chamou «ideia-força», cujo aspecto principal consistia no desenvolvimento da guerrilha com base numa relação estreita da direcção do MPLA, com os militantes e as populações, o que implicaria a entrada dos dirigentes no país para aí, perante as realidades, organizarem e formarem politicamente militantes e populações em simultâneo com a condução da luta e o desenvolvimento da guerra. A maior parte dos membros da direcção apoiou Gentil Viana e a conferência votou as teses de Gentil Viana.

O seu plano depressa foi abandonado pelo comité director e mais tarde seria apelidado de “as teses guevaristas do Viana”. Não vendo sinais reais de mudança no MPLA, Gentil Viana que mantinha a sua condição de militante, decidiu afastar-se das actividades do movimento. Em 1964, vai para a China, onde também já estava exilado Viriato da Cruz, que era então dirigente da Organização dos Escritores Afro-asiáticos. Nesse país conviveram e continuaram as suas discussões filosóficas e políticas. Gentil Viana traduziu para a língua portuguesa obras de alguns clássicos do marxismo e também de Mao-Tse-Tung (Mao-Dzé-Dong, na grafia actual.

Numa visita que uma delegação do MPLA, chefiada por Agostinho Neto, faz à China, em 1971, o presidente falou com Gentil Viana e ambos acordaram que este voltaria à sua actividade militante. Pouco tempo depois, G.V. realizava uma formação militar superior na China, integrado num grupo de quadros do MPLA para aí enviados (a quase totalidade dos companheiros de Viana neste curso foram nomeados para altos cargos militares e policiais no regime que o MPLA implantou na Angola independente).

Quando, em meados de 1972, Gentil Viana e os seus companheiros daquele curso chegaram à Zâmbia, que era a rectaguarda da chamada Frente Leste do MPLA, encontraram uma situação política e militar extremamente degradada. A ofensiva do exército português tinha desmantelado as bases guerrilheiras e levado populações, militantes e quadros a refugiarem-se no país vizinho. Este grande fracasso devia-se mais ao desastroso funcionamento do MPLA que ao poderio militar colonial. Perante a desorientação e o desânimo reinante nas fileiras do movimento, Gentil Viana propôs que se desencadeasse um vasto movimento de discussão e crítica que envolvesse populações, militantes e dirigentes. Para tal suspendia-se temporariamente o comité director e as hierarquias de modo a que todos falassem em pé de igualdade. O objectivo final era - com base na análise das críticas, das ideias saídas da discussão sobre todos os aspectos da vida do movimento, da sua organização e estratégia - elaborar-se uma nova estratégia e eleger novos órgãos directivos políticos e militares que deveriam relançar a luta armada e aperfeiçoar continuamente a organização. Agostinho Neto aceitou este plano de Gentil Viana e, assim, começou, nas regiões fronteiriças uma profunda discussão com os militantes, quadros e população apoiante do MPLA sobre os problemas e soluções possíveis que foi intitulada “movimento de reajustamento”. Gentil Viana elaborou textos de grande densidade política, nomeadamente sobre os porquês do “movimento de reajustamento”, os objectivos da luta de libertação nacional angolana e como os alcançar, o contexto nacional e internacional naquele momento, a necessidade de métodos democráticos no funcionamento das organizações políticas, a importância do conhecimento humano para a análise dos problemas e soluções e na evolução das sociedades. Foi grande o empenhamento de todos nesta vasta crítica e discussão que deu origem a uma renovada e generalizada esperança. O “movimento de reajustamento” devia culminar na eleição de uma “comissão provisória de reajustamento” que passaria a ser o órgão dirigente na Frente Leste. Segundo Viana, a lista devia emanar directamente da assembleia final mas Agostinho Neto recusou, dizendo que ele próprio faria uma lista dos futuros dirigentes que a assembleia ratificaria; outros quadros a quem Neto já prometera postos, apoiaram-no, tendo ficado G. V. isolado sobre esta questão crucial.

Inesperadamente, pouco tempo depois deste “movimento de reajustamento”, em Dezembro de 1972, Agostinho Neto assina com Holden Roberto em Kinshasa um acordo pelo qual as duas organizações políticas a que presidiam se juntam numa frente política e militar. Este acordo, obtido pela pressão de Mobutu que queria relançar a FNLA, onde houvera uma tentativa de golpe de estado cuja repressão dizimou dezenas de quadros militares, traduzia-se numa posição de inferioridade para o MPLA, pois a condução política dessa frente seria feita pela FNLA. Em breve este movimento e Mobutu exploraram diplomaticamente o trunfo que lhes caira na mão. Entretanto, Neto ordenava a transferência de quadros militares da frente Leste para o Congo- Brazzaville, na ilusão de que poderia relançar a luta no Norte de Angola, cuja fronteira a FNLA e o Congo lhe tinham fechado até aí. Após as esperanças de relance da luta na Frente Leste que o “movimento de reajustamento” trouxera, criava-se este vazio. Com pretexto de que a direcção do MPLA só se interessava por fazer a guerra no Norte, e na sequência de uma revolta latente dos quadros do Leste contra os do Norte, desencadeou-se uma insurreição de guerrilheiros, quadros e populações na Zâmbia que Chipenda apadrinhou e de que viria a assumir a condução: assim nascia uma facção do MPLA, a chamada “Revolta do Leste”.

No início de 1973, era crítica a situação do MPLA: continuava o impasse militar no Norte, estava diminuido diplomaticamente na arena internacional pelo recente acordo, enfrentava uma insurreição na vasta Frente Leste. É então que Agostinho Neto nomeia Gentil Viana seu conselheiro pessoal. Este traça um plano de combate diplomático que faça o MPLA retomar a iniciativa nesse campo e ele próprio faz várias missões a países africanos e organismos.

Em finais daquele ano o presidente do MPLA ordena que se faça um “movimento de reajustamento” na rectaguarda da Frente Norte, ou seja, bases guerrilheiras de Cabinda e instalações do movimento em território do Congo Brazzaville. Não era mais a discussão que se fizera no Leste, era um arremedo com pessoas escolhidas previamente para a orientação da discussão. Este “reajustamento” nada resolveu e criou tensões enormes. Não tendo aceitado participar na Comissão Provisória de Reajustamento, Gentil Viana é expulso da assembleia de militantes activos em Fevereiro de 1974. Depois disto, Viana e alguns quadros decidem organizar-se para lançar um apelo aos militantes. Começava assim a Revolta Activa. G.V. redige um documento que é aprovado após discussão clandestina e marcada a sua difusão para finais de Abril, quando estariam garantidas todas as medidas de protecção do governo congolês aos signatários. Entretanto, dá-se a revolução do 25 de Abril em Portugal e o documento teve de ser refeito para introduzir a análise da nova situação. Nesse documento, assinado por vários quadros e antigos dirigentes, indicavam-se os pressupostos que deviam orientar as próximas etapas de luta, enunciavam-se conceitos de um estado moderno que devia ser Angola, criticava-se o «presidencialismo absoluto» reinante no MPLA, requeria-se um congresso que deveria refazer a unidade do MPLA, dividido em três facções, e estabelecer os métodos democráticos na vida do movimento.

O congresso viria a realizar-se em Lusaka por pressões dos países vizinhos mas Agostinho Neto abandonou-o logo após o seu início. Em Setembro de 1974 os mesmos presidentes conseguem em Brazzaville um acordo proposto por Gentil Viana entre os responsáveis das três facções, pelo qual era constituído um comité central e um colégio presidencial composto de um presidente, Agostinho Neto, e dois vice-presidentes Daniel Chipenda e Joaquim Pinto de Andrade. No entanto, Agostinho Neto já desenvolvera intensos contactos em Portugal e, contando com o apoio da maior parte dos dirigentes do MFA e da extrema esquerda portuguesa, desprezou esse acordo e realizou em Outubro as tréguas com o exército português.

Depois do Acordo de Alvor, no início de 1975, que definia os moldes de acesso de Angola à independência, dirigentes da Revolta Activa, nomeadamente Gentil Viana fizeram várias reuniões com enviados da direcção do MPLA para a sua reintegração no movimento como militantes. Contudo, cinco meses após a proclamação da independência do país, o Bureau Político do MPLA decretava a prisão de vários membros da R.A. Apesar da luta que já travavam no seio do movimento, Agostinho Neto e Nito Alves estavam unidos na repressão a membros da OCA e da Revolta Activa. Preso, Gentil Viana ficou à guarda de tropas cubanas. Imediatamente encetou uma greve da fome alegando que, na sua terra, não queria ser guardado por tropas estrangeiras. Foi transferido em coma para uma clínica onde acordou acorrentado à cama.

Passados mais de dois anos e meio, Agostinho Neto decretou uma amnistia e, em Novembro de 1978 Gentil Viana é expulso de Angola, tendo seguido acompanhado de um agente da polícia política, a DISA, para a Jugoslávia para se tratar da cegueira que lhe atingira o olho esquerdo. Nesse país acabou por ser recebido com deferência, dado o prestígio que tinha. Dali seguiu para Portugal onde teve de lutar para conseguir um cartão de estrangeiro residente, pois estava na condição de apátrida. Com a ajuda de amigos pôde começar a exercer a sua profissão de advogado. Em breve, com companheiros seus também forçados ao exílio iniciou projectos de intervenção cívica através de estudos que deviam ser relizados sobre Angola. Em meados dos anos 80, cria com alguns companheiros um Grupo de Reflexão. Este grupo elabora e envia em 1989 aos chefes de estado africanos um memorandum sobre a guerra civil em Angola e as suas seis componentes: União Soviética, Cuba e MPLA por um lado, Estados Unidos da América, África do Sul e UNITA por outro. Mais uma vez a iniciativa e o documento base era da autoria de Gentil Viana. Já em 1990, outras diligências para a paz em Angola, incluindo diplomáticas, foram feitas por este Grupo de Reflexão que foi recebido por entidades e partidos políticos portugueses e dirigentes da República de Cabo Verde. Neste país, os membros do Grupo de Reflexão assinaram e publicaram um documento em que se propunha o “recurso à Nação” para que a Paz fosse encontrada, pois sendo útil a mediação estrangeira no conflito, só a participação efectiva e a todos os níveis dos cidadãos angolanos no processo seria garante de sucesso. A ideia de recurso à Nação parteiu de Gentil Viana e ele redigiu o documento.


Entretanto, a UNITA e o MPLA tinham começado secretamente as longas negociações que levariam aos acordos de Bicesse em Maio de 1991. Em Novembro desse ano, Gentil Viana analisando a precária situação em Angola e a enorme possibilidade de reinício da guerra civil, elabora um plano de convivência nacional e parte para Angola para o apresentar. Esse plano previa a assumpção de um compromisso público de renúncia à guerra por parte dos dois beligerantes e de convivência pacífica de todas as forças políticas, sendo garante da sua aplicação uma instância constituída por representantes das religiões, de organizações cívicas e profissionais, e por individualidade de reconhecido prestígio cívico e moral. A ideia mestra era mais uma vez o “recurso à Nação”. O bispo da Igreja Evangélica, o cardeal da Igreja Católica, o presidente da República e os dirigentes de todos os partidos (tinham-se formado numerosos) receberam com simpatia Gentil Viana e um seu companheiro de luta. Mas, quando eles voltaram a Angola em Maio de 1992 para desenvolver as suas ideias, encontrou indiferença porque cada beligerante já contava as espingardas para uma eventualidade de o resultado das eleições não lhe ser favorável. E, de facto, cerca de um mês após as eleições de Setembro de 1992 a guerra recomeçava na própria capital do país. Gentil Viana, que tinha regressado à sua actividade profissional em Lisboa, ficou profundamente abalado. Em Novembro de 1962 sofreu um acidente vascular cerebral de que veio a recuperar surpreendentemente.

A guerra civil foi prosseguindo e Gentil Viana envelhecendo. Agora que a paz parecia ter voltado Viana ia ficando enfraquecido e doente. Atingido recentemente por uma leucemia, Gentil Viana veio a falecer em Lisboa neste sábado, 23 de Fevereiro de 2008.
Gentil Viana, senhor de uma espantosa inteligência, permanente combatente pela liberdade do seu povo e pela liberdade de toda a Humanidade, viu as suas enormes capacidades desperdiçadas por quem tomou as rédeas do poder na Angola independente e, pior que isso, foi perseguido e escorraçado do país que ajudou a libertar. Estão de luto todos os verdadeiros patriotas angolanos, estão de luto todas as pessoas do mundo amantes da liberdade e do progresso.

23 de Fevereiro de 2008
Adolfo Maria


P.S.
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